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sábado, 9 de março de 2024

Irã, por Carmen Lícia Palazzo - uma aula de história

Texto meu sobre o Irã, que já foi publicado e também foi parte de apresentação em um seminário. (Foto minha: arte do Irã Sassânida, século IV. Na exposição sobre a Rota da Seda, Sackler Gallery, Smithsonian, Washington. DC.) 

IRÃ

Carmen Licia Palazzo

9 de março de 2024

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Carmen Lícia Palazzo

 IRÃ

Carmen Lícia Palazzo

Entender o Irã e as imensas possibilidades que este país tem de retomar o caminho da modernização sem o abandono de suas raízes culturais passa, necessariamente, por uma análise do longo prazo sobre diversos temas que antecedem e transcendem as atuais discussões em torno do fundamentalismo religioso. O objetivo desse texto é apenas o de apontar alguns dos aspectos relacionados com as especificidades da cultura iraniana, importantes para o acompanhamento das mudanças e retrocessos que ocorrem naquela sociedade, as mudanças tendo sido consideráveis especialmente durante a presidência de Mohamed Khatami (presidente de 1997 a 2005), um período que merece estudo detalhado dos especialistas.

No entanto, sempre é bom lembrar que a História não segue sempre um caminho ascendente, há permanências e mudanças, há retrocessos em qualidade de vida, mas há também novas perspectivas e melhorias importantes de qualidade de vida, há paz e guerras, nem sempre nas mesmas áreas geográficas, nem sempre nas mesmas sociedades. Conhecer a História só é possível levando em conta a longa duração.

Fazer referência à revolução que derrubou a monarquia em 1979, contextualizado-a apenas no quadro estrito do expansionismo muçulmano, pouco esclarece sobre uma sociedade que teve seu raio de ação estendido, durante muitos séculos, à Ásia Central e a diversas regiões do subcontinente indiano. Tanto a ocidentalização forçada dos xás Reza e Mohamed Reza Pahlevi quanto o posterior estabelecimento da república teocrática dos aiatolás sufocaram apenas parcialmente a diversidade de uma cultura que agora, mais uma vez, dá mostras de estar emergindo e que poderá vir a modelar um Irã renovado ainda que só daqui a algum tempo. Olhar só para o presente limita qualquer análise mais profunda.

Sem retroceder a reflexão a um passado tão distante quanto o das dinastias dos aquemênidas, dos selêucidas e dos partos, cabe, porém, uma referência ao império sassânida, já que foi no seu âmbito que o zoroastrismo, religião formadora do imaginário iraniano e influência fundamental no xiismo, atingiu o status de fé oficial e cimento da sociedade.

Em outros aspectos, também, as permanências da cultura sassânida permearam o que viria a ser o mundo islâmico. A literatura persa tinha já uma antiga tradição, tanto no gênero épico quanto na poesia e nos contos populares. E, com a grande valorizacão dos escribas durante os reinos sassânidas, o respeito à palavra escrita sedimentou-se e passou a ser um dos grandes legados da cultura persa (1). Por outro lado, a burocracia letrada que podia ser encontrada em grande parte do território iraniano permitiu aos árabes estabelecer uma eficiente administração à medida que se expandia a conquista.

Com o surgimento do Islã, modificaram-se as relações de força em todo o Oriente Médio e, em seguida, também na Ásia Central. Maomé e seus sucessores beneficiaram-se das rivalidades perso-bizantinas que enfraqueceram consideravelmente os dois grandes impérios, abrindo caminho para a avassaladora conquista árabe. Num primeiro momento, os Omíadas, que governaram após a morte do Profeta, discriminaram os não-árabes, mesmo os convertidos, no acesso a funções importantes da administração, mas a partir de 750 a nova dinastia Abássida valeu-se do descontentamento dos persas, conquistados e marginalizados, para chegar ao poder. A partir de 754, com o início do reinado de Al-Mansur, cresceu muito a influência persa na administração abássida (2), justamente com o aproveitamento dos escribas e funcionários de alto nível que haviam sido parte da estrutura sassânida. Foi um tempo de grande avanço cultural, da chamada Idade de Ouro do Islã, do seu encontro com outras culturas, com intelectuais da Índia, entre muitos outros.

O que, no início, havia se caracterizado como um impressionante movimento de tribos árabes tomando o poder no Oriente Médio, passa então a se constituir numa conquista que agrega outras culturas. Os resultados, no decorrer dos séculos, não serão homogêneos e novos invasores ameaçam os governantes estabelecidos, criando um clima de instabilidade que vai marcar profundamente toda a região. O Irã, porém, destaca-se nos diversos aspectos de continuidade que podem ser observados em muitos séculos de História. A conquista árabe e a islamização não destruíram as características da cultura persa – ao contrário, foi esta última que influenciou em profundidade a organização administrativa, a literatura e a arte dos conquistadores.

Quando o império sassânida caiu, em 637, não ocorreu, associada às conversões ao Islã, uma arabização completa do Irã, que até hoje conserva o idioma persa, marco significativo de continuidade cultural. A religião muçulmana foi o elo que ligou os povos do Oriente Médio no decorrer de uma conturbada história de invasões, de ascenções e quedas de dinastias e de conflitos tribais que conduziram a períodos de desorganização administrativa. A comunidade de uma mesma crença assumiu, pois, a função de estreitar os laços entre os fiéis, reforçando solidariedades. Mas a nova fé se desenvolveu em meio a referências anteriores, entre elas o zoroastrismo, o judaísmo e o cristianismo.

No caso do Irã, o zoroastrismo deixou marcas profundas e, embora seu surgimento remonte talvez ao século VII ou VI a.C, foi com a dinastia sassânida que seu poder se associou ao dos monarcas, tornando-se uma força que permeou toda a sociedade iraniana. Em alguns aspectos, o zoroastrismo antecipa o judaísmo, o cristianismo e o islã, pregando a existência de um paraíso que receberá os bons e um inferno para aqueles que se colocarem ao lado do mal. No entanto, para a doutrina de Zoroastro, o Criador (Ahura Mazda) e o Destruidor (Ahriman) detêm igual poder, são forças equiparadas num permanente combate (3) e, neste aspecto, talvez seja possível observar certa semelhança na avassaladora preocupação com o mal na vertente iraniana do xiismo.

Língua, cultura e religião eram as bases sobre as quais se afirmava o poder islâmico. No entanto, diferente do Egito onde foi desaparecendo a língua copta, associada à minoria cristã, o Irã não apenas manteve o persa como o viu estender-se pela Ásia Central e através do subcontinente indiano, alcançando a estatura de idioma das chancelarias. Juan R. I. Cole analisa o contexto no qual o imperador da Índia, Akbar, fez do persa o idioma oficial de sua corte, procurando justamente atrair funcionários iranianos reconhecidamente qualificados. Akbar, que reinou entre 1556 e 1605, ordenou, inclusive, que o persa fosse ensinado nas escolas religiosas (4).

O caminho de expansão acentuada da influência iraniana em uma larga área geográfica certamente favoreceu a permanência de uma cultura que continuava se afirmando como original e não simples tributária da expansão árabe, embora por ela também influenciada. O encontro arabo-persa enriqueceu ambas as partes e o Irã, mesmo convertendo-se à religião dos conquistadores, não abdicou de suas raízes. A excelência na produção de manuscritos, reconhecidos internacionalmente pela qualidade da caligrafia e das iluminuras, fez com que a arte persa fosse admirada muito além de suas fronteiras. Na literatura – e em especial na poesia – o Irã deu valiosas contribuições ao mundo islâmico. Escritos como os de Omar Khayyam (1048-1131), Rumi (1207-1273), Hafez (1320?-1389) e Jami (1414-1492) atravessaram os séculos e ainda hoje iluminam nossa compreensão do Oriente.

No século XX, a dinastia Pahlevi, que se auto-atribuiu origens históricas discutíveis, tinha consciência de que era necessário afirmar-se levando em conta uma cultura milenar e o orgulho persa de suas origens. No entanto, ao buscar a modernização forçada e imediata, o primeiro xá, Reza, quis também apelar para o nacionalismo, evocando o mito ariano que pretensamente considerava os indo-europeus superiores a todos os outros povos, demarcando assim o Irã dos demais países do Oriente Médio (5).

Tanto Reza quanto seu filho e sucessor, Mohamed Reza, buscaram justificativas na história pré-islâmica para seus governos autoritários, afrontando, desta maneira não apenas o clero xiita, mas todo um imaginário que desde o século VII vinha sendo construído da mescla de culturas árabe e persa. Se o regime do último xá caiu, sob a Revolução Islâmica, em 1979, devido ao descontentamento geral com os abusos de poder, com a corrupção e com a violência da repressão e da tortura, não seria menos verdade afirmar que o desrespeito a treze séculos de história após a conquista árabe também contribuíram para seu final.

Atualmente o fundamentalismo religioso dos aiatolás não consegue ocultar a realidade de uma nação cuja especificidade cultural inclui, mas vai muito além das questões de fé. O dinamismo da sociedade iraniana e a valorização da cultura têm, em diversos momentos, rompido a camada de repressão que tenta abafar suas melhores realizações, como o cinema, a literatura e as artes plásticas. O movimento feminista, talvez poucos saibam, no Ocidente, é ativo no Irã e inclui em suas fileiras jovens e idosas trabalhando lado a lado.

Sem dúvida a longa tradição de interesse pela escrita e o orgulho pela especificidade persa são alguns indicadores das possibilidades de abertura, resgatando raízes históricas que, transformadas, podem conduzir o país a um novo patamar de desenvolvimento. Mohamed Khatami, eleito presidente em 1997, falou, durante todo o seu governo, insistentemente, em tolerância e diversidade. Em se tratando de um ex-ministro da Cultura, suas palavras podem ser interpretadas como um estímulo à reflexão e não como simples “slogans” políticos.

É importante destacar também que, apesar do discurso muito fundamentalista, por exemplo, na época em que era presidente Ahmadinejad (presidência de 2005 a 2013), sua eleição se deu muito mais em virtude do descontentamento da população com a crise econômica do que por motivos religiosos. Por outro lado, o que Ahmadinejad pretendia, na época, com sua retórica inflamada, era assumir uma posição de liderança no Oriente Médio, ainda mais quando já havia deixado de existir a ameaça daquele que havia sido seu grande rival, Saddam Hussein.

Atualmente, tem se mantido e até reforçado a busca da liderança, mas o grande rival é a Arábia Saudita. E os sauditas contam com o apoio dos EUA, o que mostra que nada é simples no jogo de alianças da região. E é interessante observar justamente como foi esse caminho desde a derrubada de Saddam (um evidente erro do governo Bush até para a segurança regional) e também desde o tempo de Ahmadinejad no Irã até os dias atuais, nos quais as alianças se voltam para isolar o Irã, ainda que para tal seja necessário fechar os olhos para o que faz Bin Salman. É nesse terreno minado de muitas disputas que os grupos terroristas prosperam.

As disputas que envolvem xiitas e sunitas, sempre insisto, não são, quando se trata de política regional, de doutrina e de práticas religiosas, mas sim de poder. Um dado importante para que se possa refletir sobre a modernidade no Irã é o fato de que as mulheres, apesar das imensas limitações impostas pelos aiatolás, são atualmente maioria nas escolas e mesmo nas universidades e a taxa de fecundidade feminina caiu de seis filhos para dois. O país, portanto, está apto a alcançar níveis maiores de desenvolvimento, inclusive porque investe na pesquisa científica.

Apesar do discurso extremista e da inegável repressão interna, a sociedade iraniana é dinâmica, bem estruturada e está preparada para futuras mudanças. Resta saber quando a sociedade civil, ou ao menos parte dela, terá força suficiente para enfrentar uma teocracia intolerante, abrindo, a médio prazo, o caminho para as necessárias transformações. Que não parecem impossíveis, já que a nova geração tem avançado muito nos estudos e nos contatos externos.

NOTAS:

1 Para uma síntese de todo o período sassânida, ver FRYE, Richard. The Golden Age of Persia. London: Phoenix Press, 2000, p.7-26

2 LEWIS, Bernard. The Middle East: A Brief History of the Last 2000 Years. New York: Touchstone, 1997, p.75-78.

3Sobre o Zoroastrismo, ver FOLTZ, Richard. Religions of the Silk Route. New York: St. Martin’s Griffin, 1999, p. 27-30.

4 COLE, Juan R.I. “Iranian Culture and South Asia, 1500-1900” in KEDDIE, Nikki R. e MATHEE, Rudi. Iran and the Surrounding World, Seattle: Washington University Press,, 2002, p.16-17.

5 Sobre Reza e Mohamed Reza Pahlevi, ver MACKEY, Sandra, The Iranians: Persia, Islam and the Soul of a Nation. New York: Plume Book, 1998 ,p.157-268.

 

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sábado, 18 de junho de 2022

Sobre a impossibilidade de conviver com a degradação moral - Carmen Lícia e Paulo Roberto de Almeida

 Vou reproduzir o ”policy statement” de Carmen Lícia Palazzo sobre a impossibilidade de se aceitar qualquer conivência ou leniência com a suprema indignidade moral, que representa a tolerância e até a aceitação do fascismo ordinário, representada pelo sublixo desumano da atual escória que desgoverna o país. Ela se refere especificamente ao meio acadêmico, mas vou estender sua reflexão indignada ao âmbito diplomático, ao declarar minha absoluta rejeição de toda e qualquer postura, em política externa, que seja conivente ou leniente com graves transgressões do Direito internacional e até da ética no plano externo, como podem ser representadas por crimes de guerra e até, possivelmente, contra a humanidade, como se constata pelos atos bárbaros sendo perpetrados na Ucrânia pelo tirano de Moscou. Afeta-me profundamente que o governo brasileiro seja complacente com os crimes perpetrados todos os dias, e que ainda consintamos em assinar declarações inaceitáveis no âmbito do Brics.

Paulo Roberto de Almeida 

Carmen Lícia Palazzo:

“O momento terrível pelo qual atravessa o Brasil, as claríssimas evidências de que o governo está nas mãos de um grupo cruel, que atravessou a fronteira que separa a civilização da barbárie, a evidente inspiração f4ascista de muitos deles me leva a uma profunda reflexão sobre algo que é parte do meu temperamento: ter abertura para tudo e para todos, ser muito sociável e entender as divergências de opinião. Meu círculo de amizades é enorme, nem é círculo, vai até o fim do arco-íris. E já encontrei muitos potes de ouro, na forma de gente excepcional, íntegra, inteligente e que muito me faz feliz.

Agora, porém, estou diante de algo que não se resume mais a amigos com distintas opções de modelos políticos e/ou econômicos. Há outro tipo de pessoas que eu "descobri" entre minhas amizades, inclusive da área profissional, os apoiadores ou, em certos casos, condescendentes com a maior torpeza, com a ignomínia mais cruel e atroz que assola nosso país. 

Decido, então, que por uma simples questão de ética eu não posso compactuar com certos posicionamentos, não posso sequer participar de eventos nos quais eu vá sentar na mesma mesa na qual estarão pessoas que fazem parte do grupo dos que, por interesse, frustrações ou outros motivos estão do lado do mal maior e mais absoluto. Eu já deixei claro, em várias oportunidades que a crueldade, o desprezo e o deboche com vidas humanas e as inclinações f4ascistas são, para mim, o mal maior. 

Há algum tempo ainda me parecia que tais pessoas poderiam mudar de ideia, que alguns colegas deixariam de lado suas frustrações pessoais para entender que eles estavam sendo apenas cúmplices ou então marionetes de um filme de terror que tinha diretor, roteirista e atores principais muito ativos e sórdidos. Pois bem, alguns poucos, parece-me que realmente poucos, felizmente, na academia persistem em seu apoio ao Perverso e, quando não o apoiam, fazem contorções verbais para não parecer que são totalmente contra a imensa tragédia que se abateu sobre o Brasil. 

Declinei minha participação de um evento no qual duas dessas pessoas dividiriam a mesa comigo. Era "apenas" um evento acadêmico, no entanto sei bem o quanto há quem manipule atividades e distorça falas... Intolerância da minha parte? Decidam como quiserem. Li muito sobre os tempos do f4scismo na Europa, li muito sobre professores que compactuaram com o mal absoluto e também sobre aqueles que recusaram apoios, que muitas vezes eram apenas para pequenas atividades, para coisas supostamente insignificantes, mas que depois cresceram. E eram esses últimos que estavam certos.

Lembrei de uma entrevista que o grande pesquisador Alberto Costa e Silva deu, sobre África, para o grupo Brasil Paralelo e, depois, como sua fala serviu de propaganda para gente da pior espécie, o que ele disse tendo sido totalmente distorcido (frases soltas foram citadas insistentemente) e também usado como "chamariz" do tal grupo. Não sou famosa e nem tenho tal importância, mas até em pequenos eventos, mesas-redondas sobre outros assuntos, ainda que nada tenham a ver com Brasil, eu quero distância, a mais total distância de todos os que, mesmo de maneira muito sutil e quase imperceptível, estão tentando justificar as ações e as falas do Perverso ou querendo igualá-lo a outros momentos da política brasileira. 

Não é um momento fácil. Não é agradável reconhecer que algumas pessoas não eram como pensávamos. Nós que abraçamos o mundo e que temos as portas de nossas casas abertas para a diversidade de pensamento, para o debate franco, agora precisamos ficar atentos porque há algo de cruel, de perigoso, de extremamente mau que se insinua pelas menores frestas. É muito triste. E implica em decisões difíceis, mas quem sabe se um dia poderemos ficar felizes por ter escolhido o lado certo. Ou os lados, pois acredito na pluralidade e é nela que eu vivo e continuarei vivendo.”


sexta-feira, 17 de junho de 2022

Uma breve geografia de meu percurso internacional - Paulo Roberto de Almeida

  Uma breve geografia de meu percurso internacional 

 

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)

Nota sintética sobre meu percurso internacional, desde a juventude, mas apenas transcrevendo os países onde já estive.

 

 

Apenas atendendo a uma curiosidade, ou provocação, de um leitor, vou listar, numa ordem não exatamente perfeita, todos os países que visitei, como curioso, como turista, como estudante, como profissional, como simples viajante ocasional ou planejado, como uma espécie de substrato a um futuro “Baedeker” de minha trajetória internacional, ou seja, o roteiro de minha geografia pessoal, que poderei fazer um dia, talvez seguindo numa mapa do mundo, onde já estive e porque, com qual motivo e quais ensinamentos retirei de cada uma dessas “visitas”. Elas indiscutivelmente fizeram parte de minha formação, de minha educação e dos insumos que passaram a incrementar meu trabalho profissional e acadêmico nessa área das relações internacionais, sem que eu me considere um “internacionalista”. 

Sou apenas um curioso e um nômade com gosto, mas bem menos nômade do que minha cara Carmen Lícia, ela sim, uma viajante incansável, e planejadora inovativa e inovadora de todas as nossas viagens da fase adulta. Mas, as minhas viagens começaram bem mais cedo, primeiro nos livros que eu lia na biblioteca infantil de meu bairro em São Paulo: Monteiro Lobato, Karl May, Emílio Salgari, Jules Verne e todos os outros escritores de viagens, alguns que provavelmente nunca viajaram aos lugares sobre os quais escreveram, mas que aprenderam em outros livros, nas enciclopédias, nos livros de viagem, nos guias de turismo, nos relatos de outros viajantes. Depois, nas primeiras viagens de carona, como mochileiro, depois como autoexilado voluntário durante a ditadura militar, finalmente como profissional da área internacional e como turista acidental. Tudo isso me formou, e como!

Mas, não vou entrar em digressões neste momento. Vou apenas listar erraticamente, embora numa certa ordem cronológica, os lugares onde eu já estive, ao sabor da pena, ou melhor, do computador (que permite ajustes, correções e adições, a qualquer momento). 

 


 São Paulo, Mongaguá (o mar, ah, o mar), viagens com o Ginásio Vocacional Oswaldo Aranha pelo interior de SP e no Paraná, na primeira metade dos anos 1960, depois de mochila à Bahia e a Brasília, de mochila pelo Cone Sul (Paraguai, Argentina, Chile, Uruguai), na segunda metade dos anos 1960. Finalmente a partida do Brasil: de barco, no final de 1970, por Tenerife, Gibraltar, Barcelona, de trem e carona pelas estradas europeias em pleno inverno: França, Alemanha, Tchecoslováquia, uma visita a um país kafkiano, literalmente, não por culpa do Franz, mas por culpa do socialismo. Começo de uma aventura de quase sete anos, de estudos, muito estudo, sobretudo em bibliotecas, as mais diversas.

Bélgica, para estudos e trabalho, a partir do início de 1971: Bruxelas e viagens pelo país, inclusive de bicicleta, Holanda, França, Alemanha, Suíça, socialismo outra vez (a convite, inclusive União Soviética e algo mais), Argélia, Espanha, Itália, Grã-Bretanha, França muitas vezes, e o contato com todos os tipos de estrangeiros, em Bruxelas, Antuérpia, Paris. De trem, de carro, de avião, esticadas para todas as partes segundo a ocasião e as oportunidades. Mas, sobretudo bibliotecas, onde as viagens eram na imaginação.  

Brasil de volta, em 1977, indo para o governo final do regime militar, mas com a repressão ainda ativa. São Paulo, e logo em seguida Brasília, dando início a uma bela carreira, feita para mim, e que justamente combinava viagens, a trabalho, e escapadas para cultura e lazer. Pela primeira vez, eu era pago para viajar, logo em seguida: Polônia socialista, Iugoslávia de Tito, aproveitando para passar por Portugal, Paris e o que mais estivesse no caminho. Tive sorte de namorar, logo em seguida, com uma pessoa ainda mais nômade do que eu: Carmen Lícia Palazzo, que já tinha viajado tanto ou mais do que eu, nas encarnações anteriores. E livros, claro, sem o que não se pode ter uma vida a dois. Casamento e planos vagos sobre o futuro; lua de mel na estrada: 11 mil kms de Fiat 147, de Brasília a São Paulo, depois Porto Alegre, Brasília novamente, para descarregar os presentes, e Belém-Brasília, com duas únicas paradas no caminho, seguido de São Luis, Belém novamente e volta a Brasília, para passeios nas redondezas.

Não escolhi sair, mas me escolheram. Lá fomos nós, final de 1979: Berna, uma capital simpática, num país ordeiro, limpinho, organizado. Nasce o Pedro Paulo, mas com quinze dias ele já estava na estrada conosco, em todos os cantões da Suíça e mesmo na França, Itália, Áustria e Alemanha. De volta à Bélgica em 1981: retomada do doutoramento, que tinha ficado interrompido na volta ao Brasil em 1977; comecei a revisar os fundamentos e a racionalidade das posturas anteriores, inclusive com base em novas e frequentes viagens.

E quais foram as viagens desta primeira incursão profissional, entre a Suíça e a então Iugoslávia, logo após a morte de Tito, entre 1979 e 1984? Primeira viagem de lazer, no primeiro fim de semana de Berna, de pura curiosidade “etílica”, foi feita na Route du Vin, da Alsácia, saindo da Suíça por Basileia, a cidade de Erasmo de Roterdam; voltamos não só com muitas garrafas de vinhos, de Riquewihr, Ribeauvillé, até Colmar, como também com um conjunto de pequenas taças para tomar os brancos da região, entre eles Pinot Noir. A partir daí não paramos mais, entre a Suíça francesa, de Genebra e Lausanne, a alemânica, até a italiana, sem contar uma vez que esquecemos o carrinho do Pedro, já de volta a Berna, em Murten ou Friburgo, não me lembro bem. Depois avançamos sobre a França, a Alemanha, a Itália, a Áustria (cruzando Lietchenstein) e até onde era possível alcançar, sem esquecer as terras do socialismo real: comprei a Marx-Engels Gesamtausgabe na Dietz Verlag de Berlim oriental, cruzando cidades das duas Alemanhas da Guerra Fria e suas fronteiras fortificadas. 

A partir de Belgrado, o mais comum eram as viagens à Itália, não exatamente para lazer, tão somente, mas sobretudo para abastecimento, numa fase de penúria socialista (mas no socialismo todas as fases são de penúria material, sem falar da miséria moral). Estávamos tão acostumados com Trieste, Padova, Veneza, que o Pedro Paulo, ao voltar para Brasília com 4 anos e meio, pediu para passar um fim de semana em Veneza, passeando de gôndola. Mas tinha também as viagens na própria Iugoslávia: Croácia e Dalmácia, Eslovênia, Montenegro, Macedônia, Kossovo, Vojvodina e outros lugares visitáveis. A partir dali fomos duas vezes à Grécia, e uma vez até Istambul e a Turquia asiática, atravessando a Bulgária e cruzando o Bósforo na grande ponte que une Europa e Oriente Médio. Itália foi, entre todas, a de maior quilometragem turística, de um canto a outro da bota, até a Sicília e a Calábria. Após a defesa do doutoramento na Bélgica, a intenção era ir de Belgrado até a União Soviética, entrando por Leningrado e voltando por Minsk ou Kiev: acabou não dando certo em Helsinque, por falta de vouchers apropriados – sem os quais seria impossível se abastecer ou se alojar ou comer – e então fizemos uma das melhores viagens de todos os tempos: da capital finlandesa até a terra de Papai Noel, Rovaniemi, no círculo polar ártico, por trem-auto, e depois atravessando a Lapônia finlandesa (milhares de lagos e zilhões de mosquitos), a sueca e o extremo norte da Noruega, onde o sol nunca se punha (claro que fomos no verão); volta pelos fiordes, Oslo, Gotemburgo (onde eu passei todo um verão lavando pratos, no verão de 1972, para pagar minha manutenção na Bélgica), Dinamarca, novamente Alemanha e volta a Belgrado, já próximo da volta ao Brasil.

Em Brasília, o que se podia fazer como passeios era nas cercanias, ou então, esticar até São Paulo e Porto Alegre, algumas vezes a Minas Gerais e ao Rio de Janeiro, uma vez. Mas foi por pouco tempo, logo estávamos a caminho da Suíça uma segunda vez, em Genebra, talvez um dos melhores postos da carreira, junto com Washington, pelo trabalho e pelas viagens, naturalmente. Nessa época, os mercados financeiros ainda não estavam tão desenvolvidos, assim que eu tinha duas ou três carteiras com francos franceses, liras e marcos alemães, eventualmente algum xelim austríaco, além de cartões de crédito. Eu até tive uma conferência diplomática no meio, em Washington, para um tratado sobre circuitos integrados sob gestão da OMPI, que eu seguia em Genebra. No continente europeu, foram dezenas e dezenas de milhares de quilômetros pelas grandes autoestradas e pelas pequenas rotas do interior, na costa italiana, no interior da França, na Romantische Strasse da Alemanha. Fui convidado para acompanhar o embaixador Rubens Barbosa na Aladi, em Montevidéu, mas ficamos em Genebra todo o tempo que foi possível. Saudades da Suíça.

Montevidéu é perto de tudo, do Brasil, de Buenos Aires, do Cone Sul, e por isso aumentamos a quilometragem, com muitas escapadas a Porto Alegre, e uma grande viagem até a Patagônia e o Chile no verão (janeiro-fevereiro de 1991), já na companhia da Maíra, conosco desde o final de Genebra, desta vez num Honda Civic, que me rendeu mais dinheiro na venda do que eu tinha dispendido na compra. Mas ficamos menos de dois anos em Brasília, pois já em 1993 estávamos saindo para a Europa novamente, desta vez em Paris. Mais viagens e incursões por toda a Europa ocidental, inclusive de novo na península itálica e na península ibérica, pois antes de ingressarem na CEE os portugueses se referiam à Europa que estava além dos Pirineus. A Grã-Bretanha já tínhamos conhecido, mas eu ainda fiz uma pequena viagem com Pedro Paulo a Londres, para visitar o embaixador Rubens Barbosa, que nessa época (1994) era o representante junto à Corte de St. James.

Depois de quatro anos em Brasília (com as costumeiras viagens a Minas e ao Sul), fomos para a capital do Império, um posto que eu relutei ao início, mas que depois se revelou uma das melhores estadas da carreira, nos planos funcional diplomático, familiar, pessoal e acadêmico (com muitas reuniões com brasilianistas e convívio com as universidades locais. Logo no primeiro fim de semana de Washington, viajamos para Gettysburg, na Pensilvânia, o histórico lugar da mais cruenta batalha da guerra civil, e do famoso discurso do presidente Lincoln sobre a democracia. Do Canadá às fronteiras do México, de Chicago às Florida Keys, percorremos, a partir de Washington, praticamente toda a costa leste e grande parte do interior – que eu chamava de “caipirolândia” – e do Sul, ainda com traços visíveis do racismo americano – um regime talvez até pior do que o do Apartheid –, com várias incursões a Nova York, Pensilvânia, Maryland e Virgínia, dois estados em que moramos de 1999 a 2003. Não anotei o total da milhagem, mas daria, provavelmente, para ir e voltar da Terra à Lua.

Na volta a Brasília, com exceção de duas ou três viagens internacionais – Florida, Buenos Aires, estão na minha memória –, viajamos basicamente no Brasil, mas também esticamos três meses no milharal do Illinois, para um estágio na Universidade em Urbana-Champaign, a convite dos brasilianistas Werner Baer e Joseph Love, com nova viagem de carro desde a Florida, ida e volta. Eu atendia basicamente convite de acadêmicos, para bancas, seminários e palestras em diversas universidades brasileiras. Foi também o período em que mais escrevi, a partir de meu quilombo de resistência intelectual, deslocando do blog para a biblioteca do Itamaraty. Em 2010, tivemos a sorte de passar oito meses em Xangai, para a exposição universal, quando aproveitamos para viajar para diversas partes do imenso país, e também a Macau, Hong Kong e Japão. No meio, fui à Espanha e vim a Brasília, para um congresso da Brazilian Studies Association. 


 De volta a Brasília, e ainda no meu quilombo, aproveitei um convite da Sorbonne, em 2012, para passar seis meses em Paris (e viajando pela Europa), para aulas no mestrado do Institut de Hautes Études de l’Amérique Latine: ainda aproveitamos para palestras na Universidade de Louvain-La-Neuve, e na Universidade de Londres. Um ano depois, aceitei trabalhar no Consulado do Brasil em Hartford, Connecticut, e foram quase três anos de viagens as mais proveitosas: ademais de incursões frequentes a New Haven (Yale), Nova York e mesmo Washington – para palestra no Foreign Institute do Departamento de Estado –, fizemos duas memoráveis travessias coast to coast, até o Pacífico, uma vez pelo Norte, outra vez pelo Sul, ademais de duas ou três escapadas ao Canadá e o outro extremo, Florida Keys.


 O retorno a Brasília coincidiu com o impeachment da presidente Dilma Rousseff, o que me levou a assumir a direção do IPRI – Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, do Itamaraty –, e com ela muitas viagens pelo Brasil e até duas ou três internacionais. Foi um dos períodos mais gratificantes intelectualmente, feito de inúmeros debates com acadêmicos brasileiros e visitantes estrangeiros, e muitas edições de livros sobre política externa. Durou exatos dois anos e meio, de agosto de 2016 a março de 2019, quando começou o fantástico desgoverno antiglobalista, ao qual dediquei pelo menos cinco livros, do que eu chamo de ciclo da diplomacia bolsolavista, que simplesmente não teriam existido se o bando de idiotas da franja lunática não destruísse com tanto empenho os padrões de qualidade da diplomacia profissional e deformado completamente a política externa brasileira. 


 Quando estávamos nos preparando para começar novo ciclo de viagens, de volta aos Estados Unidos e novamente à Europa, talvez até mesmo a China, começou a desgraça da pandemia da Covid-19, e depois a guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, situação que ainda perdura. Estamos só aguardando uma acalmia no mundo, para retomar nossas viagens, agora puramente de lazer intelectual e prazer gastronômico.

Continuarei minha pequena geografia do mundo em outra ocasião. Apenas lembro que minhas postagens na plataforma Academia.edu são acessadas em dezenas de países e em centenas de universidades, o que já foi objeto de diversas postagens minhas, sobre esses acessos “universais” na própria plataforma. Também me utilizo ocasionalmente de outra plataforma, a Research Gate, mas a quase totalidade dos trabalhos pode ser conferida ou no meu site pessoal, ou na plataforma Lattes, obrigatória para qualquer acadêmico. Muita coisa pode ser vista no meu quilombo de resistência intelectual que, pela última contagem, já indica quase 25 mil postagens (desde 2006), mais de 9,5 milhões de acessos a essas postagens e algo como 919 seguidores (inclusive um que se intitula “Padre Eterno”, sic). Com livros e acesso a praticamente toda a imprensa mundial, já estou “viajando” todos os dias, mas estamos aguardando tempos mais amenos para retomar a estrada, antes que avião. A despeito dos temores, já estivemos três vezes em São Paulo e uma longa viagem até Gramado e Porto Alegre, neste ano. Aos poucos vamos retomando os caminhos de sempre e provavelmente também alguns novos, no continente ou fora dele. Vontade não falta...

 


Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4172: 17 junho 2022, 6 p.

www.pralmeida.org
diplomatizzando.blogspot.com
CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/9470963765065128
https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida
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quinta-feira, 16 de setembro de 2021

Felicidades ao povo judeu no Yom Kippur - Carmen Licia Palazzo e Paulo Roberto de Almeida

 Mensagem de Carmen Lícia Palazzo a propósito do Yom Kippur, seguida de meus próprios cumprimentos:

Hoje, 15 de setembro 2021, Yom Kippur. Com essa arte de "Downstar Studios" envio a todos os meus amigos da comunidade judaica, mas também para todos nós, luz e amor em tempos que pedem muita reflexão sobre nossos pensamentos e atos, sobre a VIDA!

Carmen Lícia Palazzo

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Felicidades ao grande pequeno povo que representa a continuidades das melhores tradições humanas, e humanisticas, no prrocesso civilizatório. Com exceção da China, nenhum outro povo conseguiu sustentar tal continuidade cultural, civilizatória, durante milhares de anos. Um feito e tanto na breve história de dez mil anos da humanidade tal como a conhecemos. Um grande feito. Na escala civilizatória, poucos povos, como o judaico e o chinês, conseguiram produzir tantas contribuições benéficas para a história humana quanto esses dois, o judaico em primeiro lugar, pela reduzida dimensão demográfica de seu povo e cultura e pelo pouco, ou nenhum poderio, que exerceram sobre outros povos e civilizações, pois nunca constituiram um império universal (a não ser o do conhecimento e o da perspectiva humanística). Parabéns!

Paulo Roberto de Almeida 


terça-feira, 7 de setembro de 2021

China, uma síntese histórica- Carmen Licia Palazzo

 Dei essa palestra online para um grande número de estudantes. Coloco aqui o texto, deixando claro que o escrevi como apoio para uma apresentação oral seguida de debate, mas talvez interesse a alguns amigos. Já tratei do tema em outros textos que postei anteriormente, mas sempre acrescento algo mais. Foto minha de Suzhou, a cidade das sedas e dos jardins.


Uma breve síntese histórica para entender a China contemporânea

Carmen Lícia Palazzo

Apresentarei o que em geral apresento para meus alunos de História como uma aula introdutória sobre a China. Provavelmente quem leu meus artigos já está a par de muito do que eu vou falar aqui, mas acho que pode servir de base para depois desenvolver um diálogo a partir das perguntas de vocês.

Eu morei na China durante aproximadamente sete meses. Já havia estudado História da China anteriormente, com foco mais voltado para a Rota da Seda e o encontro de culturas. Atualmente trabalho em uma pesquisa sobre a arte na Rota da Seda, especialmente dos séculos VI ao XV, mas no caso da China eu me estendi mais no estudo da sua história. 


Durante vários anos fui professora no Curso de História do UniCeub aqui em Brasília e justamente depois de já ter tido um certo conhecimento teórico sobre aquela civilização, pois muitos consideram (e eu concordo com eles) a China mais uma civilização do que um país, é que eu tive a oportunidade de passar sete meses lá, com sede em Shanghai, mas viajando intensamente por grande parte do território, de norte a sul, desde o porto de Macau até não apenas Beijing mas também o corredor do Gansu  e o oásis de Dunhuang, na entrada dos desertos de Taklamakan e de Gobi.


Deixo claro que o meu enfoque é o de historiadora.

E eu considero que, para entender a China contemporânea é importante observar o que nós, historiadores, denominamos de mentalidades na longa duração. A modernidade na China não deve ser vista como uma ruptura porque ela traz consigo uma tradição de muitos milênios que é preciso ter em conta para o entendimento da sociedade chinesa e de como os chineses se veem.


A primeira consideração importante é a de que a China é a única civilização cuja escrita atual tem suas raízes em caracteres que datam de pelo menos 3.500 anos. O início para o qual existe testemunho material da escrita chinesa é aproximadamente o do ano 1.500 a.C. Os caracteres que receberam esta datação foram escritos em ossos de animais, em carapaças de tartarugas e no interior de objetos de bronze usados em diversos rituais e descobertos em escavações arqueológicas relativamente recentes, várias delas datando do século XIX. Tais objetos estão disponíveis em diversos museus chineses. Aliás a museologia é altamente desenvolvida na China e coleções magníficas podem ser encontradas em diversas cidades, em muitas regiões do país. Os chineses prezam contar sua História.


Diferente dos hieróglifos do Egito, os caracteres chineses atravessaram milênios, transformaram-se, mas vários deles mantiveram sua estrutura ou alguma referência com os de um distante passado. Os testemunhos das origens milenares da escrita estão justamente presentes em diversos museus e são motivo de orgulho também para as novas gerações. As crianças chinesas sabem que estão aprendendo uma caligrafia que tem origem nos seus mais remotos ancestrais e, apesar de toda a modernidade presente nas escolas,  escrever é uma arte que continua tendo considerável prestígio no país. 

Outro motivo de orgulho para os chineses diz respeito ao fato de que, embora o longevo império tenha enfrentado muitas invasões e, em duas oportunidades, tenha sido governado por etnias estrangeiras – os mongóis da dinastia Yuan (1271 até 1368) e os manchus, da dinastia Qing (1636 até 1911) – sempre prevaleceu a cultura e a escrita chinesas bem como a estrutura da administração largamente influenciada pelo Confucionismo. Dada a grande extensão territorial do império, a formação da burocracia, para o funcionamento do núcleo central da Corte e até as mais remotas províncias era uma preocupação constante. 

Desde muito cedo foram organizados concursos que selecionavam os candidatos mais capacitados para exercer diversas atividades como funcionários imperiais. Os primeiros concursos dos quais se têm registro datam do ano de 650. No entanto, sua implementação de maneira regular passou a ser realizada pela dinastia Song (960-1279), mais precisamente a partir do século X, mantendo-se de forma ininterrupta até sua extinção em 1905, no período final do império Qing, tendo durado portanto por quase dez séculos.


Com pequenas variações pontuais, o conteúdo dos concursos imperiais exigia o conhecimento aprofundado e a capacidade de interpretação de dois conjuntos de obras essenciais da cultura chinesa: os Quatro Livros e os Cinco Clássicos. Resumidamente pode-se dizer que os textos considerados como os mais importantes destas obras eram os Diálogos de Confúcio com seus estudantes (os Analectos), os escritos de Mêncio, um discípulo de Confúcio mas que desenvolvera algumas ideias próprias, os Anais com descrições históricas e o I Ching, ou Livro da Sabedoria. 

Considerando-se que os concursos só foram abolidos no início do século XX, pode-se constatar a importância do Confucionismo e da cultura clássica e sua permanência no universo mental da sociedade chinesa na longa duração. E como a aprovação nos diversos níveis dos concursos imperiais eram um significativo instrumento de ascensão social,  o estudo, os ensinamentos de Confúcio e os professores eram também muito valorizados, valorização esta que se tornou uma das características mais fortes da cultura da China. 


Na cidade de Jiading, próxima a Shanghai, há um interessante museu dos Concursos, nos quais há alguns modelos de provas e informações sobre os conteúdos. E, o que é uma curiosidade bem interessante: um colete com cola escrita nele e que foi apreendido de um candidato que tentava assim levar escrito uma parte dos conteúdos que deveriam ser decorados.

Um aspecto importante da civilização chinesa é a defesa da sua integridade territorial. Em épocas nas quais a Europa estava fragmentada em feudos a China já era uma monarquia absolutista preocupada com a defesa de suas fronteiras e com a manutenção de uma corte centralizada e imperial. Em alguns períodos houve reinos que combateram entre si, dentro do território de cultura chinesa, no entanto sempre emergiu dos períodos de lutas uma dinastia aglutinadora e forte. 


A construção da Grande Muralha, que foi realizada no decorrer de séculos, é emblemática da preocupação com a defesa territorial e, embora ela não tenha sido efetiva para deter todas as invasões, era afirmativa de um poder imperial que reinava sobre uma civilização unificada por diversas características culturais e entre elas por uma mesma escrita, ainda que existissem e ainda existam inúmeros dialetos. Nem sempre a dinastia governante era de origem chinesa, portanto “han”. A mais conhecida dinastia estrangeira que conquistou a China, ainda que adotando largamente a cultura chinesa, foi a dos mongóis. Kublai Khan, neto de Gengis Khan, chefe mongol que unificara diversas tribos do norte, fundou a dinastia Yuan, após conquistar a China. É a corte de Kublai Khan que  está relatada no famoso livro de Marco Polo. 

Crises no abastecimento agrícola e um grande descontentamento entre o mandarinato chinês, que era preterido em altos cargos pelos mongóis e até mesmo por outras nacionalidades, foram responsáveis, entre outros fatores, pela queda dos Yuan após quase um século no poder.  A ascensão de uma dinastia novamente de etnia chinesa que se autodenominou Ming, ocorreu em 1368 e foi um dos mais brilhantes períodos da arte da porcelana e da pintura na China.  Mas, em 1644, as constantes invasões de novas tribos do norte, que sempre cobiçavam o rico Império do Meio, levaram à desestabilização dos Ming, enfraquecidos, por sua vez, por novas crises econômicas e altos impostos. Os invasores manchus destronaram o imperador Ming em 1644 e assumiram o que viria a ser a derradeira dinastia, a dos Qing, antes da República. Foi um período de muitas realizações principalmente no reino de dois brilhantes imperadores, Kangxi e Qianlong.


Em seus relacionamentos com o exterior, a China teve fases muito distintas e isto influenciou bastante o seu desenvolvimento. Na Antiguidade e no início do que no Ocidente nós chamamos de Idade Média, o comércio de produtos chineses foi de longo alcance através de uma intensa movimentação de mercadores que, posteriormente, ficou conhecida como Rota da Seda. Através de estradas, caminhos e até mesmo oásis nos desertos, principalmente o de Taklamakan e o de Gobi, circularam caravanas nas quais estavam presentes também alguns peregrinos e aventureiros, mas formadas sobretudo por comerciantes que levavam até os portos do Mediterrâneo oriental e ocidental as manufaturas chinesas muito prezadas nas cortes europeias, entre elas as sedas e as lacas. Às mercadorias chinesas, somava-se também ao longo da Rota todo um comércio oriundo de outras partes da Ásia, como tapetes, perfumes e temperos.


Na movimentação da Rota da Seda, chegaram à China os primeiros muçulmanos. Recentemente têm ocupado o noticiário internacional os problemas que ocorrem entre o governo chinês e os muçulmanos uigures do Xinjiang. E aqui eu gostaria de explicar para vocês que não se trata, porém, do único grupo de praticantes do Islã na China, já que os de um grupo denominado Hui têm como ancestrais os mercadores persas e árabes que, desde provavelmente o século VIII não apenas circularam em território chinês nos caminhos da Rota da Seda, mas muitos ali se estabeleceram, casaram-se com mulheres chinesas e, com o passar dos séculos, adquiriram feições, hábitos e o idioma chinês. 

MAPA DOS UIGURES

Os Hui são considerados um grupo à parte dos chamados chineses Han pelo fato de serem muçulmanos, no entanto em suas feições e na maior parte de seus hábitos (excetuando-se o consumo de porco) pouco diferem dos chineses e são, algumas vezes,  denominados “chineses Hui”. Este grupo raramente se envolve nas questões que tornam tão complicada a convivência dos muçulmanos uigures com os chineses.

Os muçulmanos uigures, porém, são de etnia túrquica ou turcomena. Eles não tem feições chinesas, seu idioma é de origem turcomena. Os uigures não têm nenhuma relação étnico-linguística com os muçulmanos Hui e vivem na chamada Região Autônoma do Xinjiang Uigur, que já foi chamado não oficialmente de Turquestão Chinês. Trata-se de uma região que beira muitos conflitos, pois faz fronteira com a Mongólia, o Cazaquistão, o Quirguistão, o Tajiquistão, o Afeganistão e a Cachemira, disputada entre a Índia e o Paquistão. E, em uma pequena parte, a região faz fronteira também com a Rússia.

A Região Autônoma do Xinjiang Uigur abriga todo um leque de etnias: uigures, chineses, casaques, tajiques, russos e outros. No passado, esteve ligada a uma Confederação de Povos Nômades, porém durante muito tempo foi parte do império chinês até que, no século XIX, no rastro das reivindicações nacionalistas que eclodiam pelo mundo, viu surgir, no seu interior, as primeiras manifestações separatistas. Mais adiante, já no século XX, ocorreram atentados terroristas graves, matando chineses. Por outro lado, em 1980, os chineses apoiaram a luta dos talibãs contra os russos, permitindo, inclusive, que muçulmanos uigures fossem participar da guerra. Mais adiante, os talibãs retribuíram o apoio mas, na Região Autônoma do Xinjiang, apoiando os uigures em suas ações terroristas contra o governo chinês. 


Trata-se, portanto, de uma complicada questão de ordem política, mais do que religiosa, mas que ocasiona graves problemas regionais. Governos do Oriente Médio, mesmo muçulmanos, também não interferem na repressão chinesa aos uigures, pois não consideram que se trate de perseguição de caráter religioso, mas de uma questão política interna da China. O desinteresse dos sauditas pelos muçulmanos uigures levou a críticas bastante contundentes, no entanto não alterou em nada as relações da Arábia Saudita com a China. 

Durante grande parte do período imperial, os chineses sempre acolheram a diversidade religiosa, ainda que às vezes privilegiando mais os budistas ou mais os taoístas, mas tendo sempre Confúcio como o seu fundamento, já que era o confucionismo a  literatura clássica vinculada ao funcionamento da burocracia. No entanto, desde os tempos da Rota da Seda, foi frequente a presença não apenas de muçulmanos mas também de cristãos, principalmente nestorianos e de judeus, na China, com maior frequência nos grandes centros comerciais, como Suzhou, Hangzhou, Kaifeng, Xi’an, entre outros. 


Sobre a convivência dos chineses com o cristianismo, é interessante destacar a presença dos jesuítas nos tempos do Império. Esse é um capítulo muito rico e de encontros culturais importantes entre os europeus e o Oriente. Os missionários jesuítas, muito estimulados pela história de Francisco Xavier no Japão, dedicaram-se também às atividades de catequese no Império do Meio, porém ali tiveram uma experiência bastante distinta da japonesa, desenvolvendo um rico relacionamento com os letrados da Corte e algumas vezes diretamente com os próprios imperadores, entre os séculos XVI e XVIII. 


A entrada de ocidentais no interior da China era difícil, pois dependia de autorização do imperador. Entre os primeiros missionários jesuítas, destacaram-se os italianos Michele Ruggieri e Matteo Ricci. Ambos teceram excelentes relações com altos funcionários da Corte e, com habilidade, conseguiram permissão para deixar Macau, que era o enclave comercial português e porta de entrada no império para penetrar no interior do continente, onde estabeleceram missões em mais de uma cidade. 

No entanto, o mais importante foram os relacionamentos que Riccci desenvolveu com o mandarinato, aprendendo o idioma, ensinando muito do que tinha aprendido no Colégio Romano (atual universidade Gregoriana) para os chineses e, afinal, sendo reconhecido como um legítimo mandarim. Mais adiante, já no período da dinastia Qing, outros jesuítas cientistas chegaram a ocupar altos postos na Corte, dois deles, Ferdinand Verbiest e Adam Schall von Bell,  como diretores do Observatório Astronômico Imperial. Os jesuítas encantaram-se com o confucionismo, com a estrutura dos exames imperiais e escreveram relatos nos quais reconheciam a China como uma civilização com a qual era gratificante dialogar. 


A China, que havia estado na vanguarda de grandes avanços, como a invenção da bússola, do papel, dos juncos que navegavam com muita agilidade, no século XVIII começava a se fechar aos contatos com o exterior, restando apenas os jesuítas para fazer uma ponte entre a ciência ocidental, que já tinha progredido muito, e os letrados chineses, em geral muito conservadores e literários. Crescia entre o mandarinato a ideia de que o Império do Meio poderia ser autossuficiente e pouco dependeria do exterior. Os progressos na catequese não foram grandes e os padres jesuítas foram bastante criticados por outras ordens porque  acabaram atuando mais como cientistas do que como missionários. 

Os jesuítas europeus permaneceram na China até a extinção da Ordem, em 1773, muitas vezes contando com o apadrinhamento de grandes imperadores, como Kangxi e Qianlong, e seus relatos e as cartas que enviavam para a Europa foram responsáveis pela construção de uma imagem positiva do Império chinês no Ocidente e pela difusão da chamada moda das “chinoiseries”. O século XVIII foi importante também na introdução do chá chinês na Inglaterra (antes do chá que depois passou a ser cultivado na Índia) e na larga demanda pela porcelana e pelas lacas chinesas, principais produtos importados pelos europeus.

No entanto, a sensação de grande poder e de invulnerabilidade que, durante muitos séculos, foi uma característica do Império do Meio, independente de qual a dinastia que estivesse reinando, e mesmo de qual a etnia, foi se esvaindo no decorrer de todo o século XIX, ainda que a corte Qing não abrisse mão de grande luxo e de uma mão de ferro para governar as províncias. As mudanças que ocorriam no rastro da Revolução Industrial envolviam principalmente os processos de modernização da Europa, dos EUA e do Japão.


Os europeus entraram em uma fase de modernização acelerada, pois justamente a Revolução Industrial havia permitido importantes avanços na construção de navios, tanto da marinha de guerra quanto da mercante. A Companhia das Índias Orientais, uma companhia charter britânica, fazia a rota comercial da Índia e da China. Por outro lado, os chineses, que no século XVIII tinham se interessado pelo conhecimento científico dos jesuítas, foram deixando de lado os avanços navais por considerar que o império dificilmente seria atacado ou entraria em alguma guerra importante. Abrir mão da modernização da frota  chinesa foi um descuido que posteriormente custou muito caro para a dinastia Qing, então reinante.

No século XIX, havia um descompasso entre a modernização acelerada da Europa, que alavancava o imperialismo, e a China, cujo império enfrentava inúmeras dificuldades além da pressão das potências ocidentais para ceder na abertura de seus portos aos navios estrangeiros.  

Os problemas internos enfrentados pela dinastia manchu eram inúmeros, entre eles uma prolongada e grave crise alimentar, resultado de problemas climáticos com grandes enchentes e diques mal conservados, impostos cada vez mais altos cobrados dos agricultores e, entre os altos funcionários da Corte, um embate persistente entre os defensores da modernização do império e os conservadores, avessos a ideias vindas de fora que contrariassem as tradições chinesas.


A partir de 1850 houve um recrudescimento da crise econômica e os grandes imperadores como Kangxi e Qianlong, que apesar de serem de dinastia manchu, eram admirados pela população em geral, estavam no passado. Com imperadores menos carismáticos e também menos capacitados na gestão do Estado, os chineses elegeram a dinastia como culpada por todos os problemas e surgiram reações populares de caráter nacionalista pedindo a derrubada dos Qing.

Uma  das guerras internas mais trágicas de toda a história da China imperial e que causou milhões de mortos (há uma estimativa de 20 milhões de vítimas diretas ou indiretas da guerra) foi a chamada Revolta Taiping, que teve início no ano de 1851 e só terminou em 1864. O líder que deu início ao levante, Hong Xiu Quan, dizia-se cristão, mas fazia, em seus discursos, um amálgama do esoterismo taoísta e algumas referências ao cristianismo, que provavelmente havia aprendido de missionários estrangeiros, e se anunciava como filho de Deus e irmão mais jovem de Jesus. Apesar do desvairio de suas afirmações, conseguiu muitos adeptos porque pregava um mundo mais justo e melhores condições de vida para os camponeses que viviam em situação muito precária. 

A difícil derrota dos Taiping, após 14 anos de uma luta devastadora só ocorreu com a ajuda das potências ocidentais que, apesar de seu caráter imperialista, desejavam obter concessões da China, mas não a deposição da dinastia reinante. Um oficial americano, Frederick Ward , e um britânico, Charles Gordon, comandaram os soldados chineses na luta contra os revoltosos Taiping. 


O mandarinato, independente de ser do grupo conservador ou modernizante, também se posicionou contra a Revolta, que conseguiu apoio da parte mais pobre da população.

Neste clima de descontentamento e de violência ocorreram também duas guerras oriundas de agressões externas para extrair vantagens sobretudo comerciais do Império, as chamadas Guerras do Ópio, que podem também ser consideradas como dois episódios de uma mesma guerra. O vício dos chineses em ópio era antigo. Inicialmente usado pela medicina tradicional como medicamento para diversos males, seu consumo foi se tornando um hábito de sociedade, inclusive entre o mandarinato, transformando-se em um vício em larga escala, principalmente a partir do século XVIII. A produção interna atendia bem a demanda até o século XVII, mas com o aumento do consumo os comerciantes chineses passaram a importa-lo dos ingleses, que abasteciam seus navios na sua possessão indiana de Bengala, onde havia grandes plantações de papoula. 


A Companhia das Índias Orientais tinha o monopólio deste comércio e, da China, levava de volta em seus navios o muito apreciado chá chinês, altamente consumido na Grã Bretanha principalmente a partir do século XVIII. As transações entre os britânicos e chineses ocorriam no único porto então aberto para tal, que era o de Cantão (Guangzhou) e assim mesmo sob diversas restrições e intermediações de funcionários imperiais.

Como os chineses tinham pouco interesse em produtos europeus e consideravam que o Império produzia quase tudo o que eles necessitavam, a Balança Comercial entre ambos os países era deficitária para os britânicos e apenas a exportação ópio indiano poderia melhorar a situação.. No entanto, alguns imperadores tentaram frear o seu consumo não medicinal, considerando que o vício, alastrado inclusive entre altos funcionários da Corte, estava prejudicando o país. 

A partir de 1831 começaram a ser feitas tentativas firmes para reprimir o seu uso e, em 1839 teve início uma repressão muito dura e bem organizada em todo o Império. Um funcionário de confiança da Corte e que administrava o porto de Cantão ordenou, no mesmo ano de 1839, a apreensão de 20.000 caixas de ópio de Bengala ali desembarcadas e fez uma queima pública de todas elas. Tal apreensão e destruição de um produto desembarcado pela Companhia das Índias Orientais foi considerada uma afronta aos britânicos tendo início, então, aquela que ficou conhecida como Primeira Guerra do Ópio. A Grã-Bretanha enviou seus navios de guerra para fazer o bloqueio de diversos portos chineses. 


Como a China encontrava-se em grande desvantagem tecnológica em relação aos europeus e sobretudo a sua marinha nunca tinha se modernizado, já que os mandarins mais conservadores não acreditavam em algum possível ataque por mar, em 1842 os chineses foram derrotados e tiveram que assinar o Tratado de Nanjing, que seria o primeiro do que depois foi denominados “Tratados Desiguais”.  

Pelo Tratado de Nanjing ficava estabelecido que a China pagaria uma elevada indenização aos britânicos, cederia a eles Hong Kong e abriria mais quatro portos (Ningbo, Xangai, Xiamen e Fuzhou) além de Cantão, que antes da guerra era o único que recebia navios estrangeiros. Na verdade, essa abertura dos portos era o principal objetivo das potências ocidentais, demanda que se coadunava com as características do imperialismo do século XIX. E, abertos à Grã Bretanha, ficavam então os referidos portos abertos também às demais potências europeias e ao Japão.

Não havia, da parte dos europeus, nenhum interesse em derrubar a dinastia Qing, com a qual, em diversos aspectos, eles mantinham um relacionamento bastante amigável e lucrativo. O que existia era o desejo de abrir a China ao comércio internacional e aos investimentos estrangeiros, já que nenhum europeu esperava conquista-la ou integra-la às suas possessões, reconhecendo a especificidade chinesa, a força de um império milenar ainda que extremamente atingido por crises de vários tipos. 


Entre 1856 e 1860 ocorreu a que ficou conhecida como Segunda Guerra do Ópio, com características muito semelhantes à anterior, desencadeada em resposta a um episódio de vistoria chinesa ao navio Arrow e às atividades de sua tripulação. Na mesma ocasião, houve o assassinato de um missionário francês, o que fez com que a França decidisse entrar também na guerra, apoiando os britânicos. Nova derrota para a China, novo tratado desigual, desta vez o de Tientsin, com mais portos sendo abertos aos navios mercantes europeus e japoneses.

Entre as vantagens conseguidas pelos europeus no rastro das derrotas chinesas, estava, desde o final da primeira Guerra do Ópio, o estabelecimento de “concessões”, além da abertura dos portos. Nelas, os estrangeiros poderiam residir sem que ficassem sujeitos às leis chinesas, mantendo seus hábitos, suas escolas e toda uma estrutura administrativa como se fosse território internacional.  Entre os exemplos que ficaram mais conhecidos e que foram mais bem sucedidos estavam a concessão britânica de Xangai, que se manteve de 1845 até 1943, e a francesa na mesma cidade, entre 1849 e 1943. 

Ainda que as concessões tenham sido uma exigência dos vencedores da guerra,  muitos chineses consideraram-se beneficiários delas pois, em diversos casos, e em especial na de Xangai, ocorreu a criação de  novos empregos e, durante a Revolta Taiping, serviu de refúgio para muitos mandarins e outros chineses que temiam a barbárie dos revoltosos. O grande desenvolvimento cosmopolita de Xangai é atribuído, mesmo pelos chineses, à presença de ocidentais em diversas atividades na cidade.


O século XIX, todo ele, vai ser de muitos conflitos também internos e em geral envolvendo sempre dois grupos opostos da elite letrada, que se constituía no corpo de funcionários mais qualificado de toda a administração imperial. Tais grupos eram o dos conservadores e o dos adeptos de uma rápida modernização tanto da Economia quanto do sistema escolar, muito engessado em função do programa dos concursos imperiais, todo ele focado nos Clássicos chineses. Deste embate entre tradição estrita e modernização vai surgir uma nova revolta, que ficará conhecida como a Guerra dos Boxers ou dos Punhos Justiceiros.

Para entender a Guerra dos Boxers é importante conhecer o contexto no qual ela ocorreu. A província de Shandong, onde se iniciaram os confrontos, era um importante centro do Taoísmo, abrigando também muitos centros budistas e a cidade natal de Confúcio, Qufu. Era – e ainda é – uma  região de muitas memórias da civilização chinesa e na qual seus habitantes, principalmente aqueles ligados a atividades camponesas, tinham   algumas práticas esotéricas de raízes ancestrais. Nessa mesma região, como resultado dos Tratados Desiguais, o Império havia arrendado aos alemães a baía onde ficava a cidade de Qingdao, na qual também se instalaram alguns outros europeus, principalmente britânicos. Eram indivíduos ligados ao comércio ou missionários, que fundaram escolas na região. 

Os missionários eram bem vistos por parte da população, pois ensinavam novas técnicas em suas escolas e eram contrários à deformação dos pés das meninas, estendo as possibilidades de estudo também a elas.  Para os conservadores, no entanto, este ambiente de modernidade era considerado ofensivo às práticas ancestrais chinesas, especialmente arraigadas na província de Shandong.


Neste quadro, ao qual somava-se a crescente crise econômica e o empobrecimento dos camponeses, uma sociedade esotérica de cunho altamente nacionalista e messiânico que se denominava Punhos Justiceiros (conhecidos no Ocidente como Boxers) insuflou a população com discursos contra os estrangeiros, acusados de  perturbar os ancestrais com seus investimentos modernos, como a construção de estradas de ferro e do telégrafo. Aos missionários, acusavam de bruxaria e de assassinato de crianças para extrair seus órgãos para rituais religiosos. O nome Punhos Justiceiros devia-se a um tipo de luta que o grupo praticava e que era considerada “mágica”, impedindo que, em uma guerra, as balas dos opositores os atingissem.

A Corte manchu ficou em dúvida se os apoiava apenas para não arriscar novos levantes da população contra ela ou se ficava neutra em relação à revolta. Afinal, venceram os mandarins próximos ao imperador que o aconselharam a dar apoio aos Boxers, o que desencadeou nova guerra contra os europeus e os japoneses, já que as Legações em Beijing foram atacadas, violando-se assim o território dos diplomatas estrangeiros. A reação foi rápida, os europeus, os norte-americanos e os japoneses enviaram tropas, atacaram os Boxers e os derrotaram, numa guerra relativamente curta que durou entre 1899 e 1900. 

O imperador Guangxu e sua tia Cixi, conhecida como a Imperatriz Viúva e que era a verdadeira eminência parda do Império, tinham se refugiado em Xi’an durante o conflito, procurando não se envolver diretamente nele, mantendo uma atitude bastante dúbia já que principalmente ela tinha um relacionamento amigável com os diplomatas estrangeiros em Beijing. Os estrangeiros, por sua vez, embora sendo alvo dos ataques nacionalistas dos Boxers, também não pretendiam derrubar a dinastia Qing e então, com os Boxers derrotados em 1901, foi assinado um Protocolo através do qual eram extraídas, do governo chinês, altas indenizações. 

A China, a cada derrota, a cada guerra perdida, como havia sido  o caso nas duas Guerras do Ópio e na dos Boxers, via suas finanças severamente comprometidas com as indenizações, passava pela situação humilhante de se mostrar tecnologicamente fragilizada, com precárias condições de combate, tendo ainda que enfrentar o imperialismo japonês, que lhe havia subtraído a Coréia como Estado Tributário (no conflito de 1894-95). A tudo, somava-se o avanço dos russos, que cobiçavam parte do território chinês ao norte.


Nesse contexto terrivelmente conturbado da segunda metade do século XIX e até o início do século XX destacou-se, às vezes nos bastidores, mas também muitas vezes na linha de frente, a Imperatriz Viúva Cixi. Concubina do imperador Xianfeng, com a sua morte ainda muito jovem, em 1861, ela chegou ao poder por ser a mãe do único filho homem do imperador, alçado ao trono ainda criança. Cixi, junto com a esposa oficial de Xianfeng, Cian, assumiu a regência que depois passou a exercer sozinha tanto por suas manobras bem sucedidas quanto por um certo desinteresse de Cian. Desde que tomou as primeiras decisões políticas, Cixi nunca mais deixou o controle político do império. Com a morte do seu próprio filho colocou um sobrinho no trono, também criança e voltou a ser regente.

Há claras evidências de que foi com muita dificuldade que Cixi manteve o equilíbrio entre a valorização da milenar cultura chinesa que ela, mesmo sendo manchu, admirava, e a inevitável modernização, que entrava no império através dos europeus, dos norte-americanos e dos japoneses. Foi também Cixi que, antes de morrer, indicou aquele que seria o último imperador, Puyi.


De toda a movimentada história da China podem ser destacadas algumas considerações importantes: 

1. O confucionismo sempre permeou e continua permeando as mentalidades chinesas mesmo após a abolição dos concursos imperiais, pois ele continua sendo considerado um clássico da literatura e sobretudo da cultura chinesa.


2. A humilhação da derrota em diversos conflitos, com as potências impondo a abertura dos portos e sobretudo as pesadas indenizações, foi provavelmente o aspecto mais visível da decadência imperial; 


3. A manutenção da integridade territorial, apesar de todos os conflitos, o que permitiu que a China, mais adiante, pudesse se recuperar e recuperar seu orgulho. Sempre houve o entendimento, da parte do Ocidente, de que o Império do Meio não seria conquistado e nem mesmo se constituiria em algum tipo de protetorado, ainda que tenha ocorrido um considerável avanço de caráter imperialista em mais de uma oportunidade.

A integridade civilizacional da China nunca esteve sob ameaça e, pelo contrário, os estrangeiros sempre demonstraram certo fascínio pelo que lá encontravam em matéria de arte e de filosofia. Por outro lado, os embates internos entre mandarins conservadores e modernizantes foram uma parte importante dos problemas enfrentados pelos imperadores e pela imperatriz Cixi. Os letrados confucionistas custaram muito a entender que o programa dos exames imperiais, calcado em estudos puramente literários, não preparava os candidatos e futuros funcionários para a realidade do mundo nos séculos XIX e XX, mas em 1905, antes mesmo da vitória dos republicanos, os exames foram extintos. 

Os missionários protestantes tiveram um papel relevante na modernização de certos setores da China ainda durante o tempo do império, principalmente na introdução de novas tecnologias e da medicina ocidental. Houve um intercâmbio importante entre as técnicas da medicina tradicional chinesa e a medicina praticada nos EUA, por exemplo. 


Voltando ao tema da passagem do império para a república, sem uma personalidade forte para comandar o Império com a morte de Cixi, em 1908, e sem que o alto mandarinato tivesse conseguido se articular em torno de um projeto de monarquia constitucional que já tinha começado a ser esboçado, mas que nunca, efetivamente, foi levado adiante, os defensores da República conseguiram ganhar muitos adeptos. 

A vitória da Revolução Republicana, sob a liderança de Sun Yat-Sen foi reconhecida sem maiores traumas já em 1911 e, em fevereiro de 1912, Puyi, o último imperador, ainda uma criança de seis anos de idade, abdicou do trono. Os republicanos venceram fazendo apelo ao fato de que o império era governado por uma dinastia estrangeira, de origem manchu, mostrando a corrupção que era endêmica na estrutura do mandarinato, mas também pelos altos impostos cobrados principalmente dos camponeses. O discurso nacionalista apontando igualmente para a influência das grandes potências estrangeiras fortaleceu a criação do Guomintang, partido centralizador, pouco democrático, mas extremamente nacionalista, que apelava para a restauração do orgulho chinês. 


Tanto Sun Yat-Sen quanto Chiang Kai-Shek eram populistas e nacionalistas e casados cada um deles com uma das filhas de uma família da elite na China, a família Soong, cujo apoio foi importante na escolha de quadros republicanos. Depois que Chiang ordenou o massacre de milhares de comunistas que ele desejava expurgar do Kuomintang/Guuomindang, porém, a então viúva de Sun, Ching Ling (Soong) rompeu com a família que se posicionou ao lado de Chiang. O rompimento foi permanente e essa é uma história que por si só vale outra palestra...


 Até a emergência de Mao e a implementação do socialismo na China, as grandes famílias tradicionais estiveram no controle da República. Já a ideia de hierarquia, de centralização das decisões políticas permaneceu na passagem do Império para a República, da mesma maneira que permanecerá também durante e depois de Mao. E, na verdade, até hoje.


Concluindo esta breve apresentação sobre a história da China, eu gostaria de destacar alguns pontos que considero importantes para entender o presente. O primeiro deles é justamente o de que a força da hierarquia, que tinha raízes milenares com as lições de Confúcio, se mantém como regra até os dias atuais. Houve um hiato de banimento da literatura Clássica e do Confucionismo em particular e este hiato foi durante o curto espaço de tempo da Revolução Cultural (1966-1976). Pois bem, não por acaso, os mentores da Revolução Cultural recrutaram para a temível Guarda Vermelha, jovens de 12 a 18 anos de idade, mas a maior parte deles entre 12 e 16 anos, a idade da rebeldia. 


A ideia era erradicar por completo as ideias confucionistas e mesmo a influência dos pais, convencendo os jovens de que os novos tempos pediam novas lideranças que não fossem intelectualizadas. Foram fechadas escolas e universidades e os livros Clássicos jogados no lixo. Adolescentes entre 12 e 16 anos encarregaram-se desse tipo de faxina para erradicar a cultura Clássica. No entanto, em uma cultura como a chinesa, tal disparate não poderia durar muito e a Revolução Cultural foi um hiato na longa duração da história da China.

A valorização do estudo e dos mestres atravessou os anos mais conturbados de guerras e de revoltas e, excluindo-se o período da Revolução Cultural, manteve-se firme em toda a China. Atualmente, mesmo com a espantosa modernização do país é muito claro o incentivo dado a pesquisas arqueológicas que trazem à tona uma história muito antiga. Quem visita o país encanta-se com a qualidade dos seus museus, repletos de objetos de muitas épocas passadas e para os quais há informações de muito boa qualidade.


Xi Jinping na minha opinião não deve ser entendido como um ditador nos moldes ocidentais. Embora trate-se de um líder autoritário, configura-se mais como um autocrata com características imperiais, quem sabe um déspota esclarecido, do que um ditador moderno como nós já tivemos a experiência na Europa e na América Latina. Trata-se de um homem culto, oriundo de uma família admiradora de Confúcio e cujo pai sofreu nas mãos da Guarda Vermelha. A China nunca foi uma monarquia constitucional. De um Império fortemente centralizador, claramente absolutista, ela passou para uma República com líderes pouco democráticos, com Sun Yat-Sen, Yuan Shikai, Chiang-Kai Shek e depois Mao. 

A prática religiosa não é proibida na China desde que os líderes de cada grupo não façam intervenção na política e nem se manifestem, em seus púlpitos, em assuntos não religiosos. Não há nenhuma restrição para falar de Buda, de Lao Tse, de Jesus  ou de Maomé dentro de cada grupo no entanto todos devem se ater a questões teológicas e não de comportamento ou estrutura da sociedade. Os chineses são muito supersticiosos, eles mantém seus cultos aos ancestrais, seus talismãs e diversas formas de espiritualidade, na China, convivem com o pensamento marxista, que aliás atualmente é bastante diluído e diz respeito apenas à importância de um partido único e da liderança de uma personalidade forte para desenvolver o país. Budistas tibetanos lamaístas e muçulmanos uigures são reprimidos por questões territoriais e não teológicas.


A reaproximação da China com os EUA vai se dar em 1971, quando Henry Kissinger se encontra com Zhou en Lai, Kissinger que vai ser Secretário de Estado de Nixon e depois de Ford, de 1973 a 1977. O encontro oficial de Mao com Nixon, preparado habilmente por Kissinger vai se dar em fevereiro de 1972. E o fim do envolvimento dos EUA com a Guerra do Vietnã, que era um problema no relacionamento com a China, vai se dar entre 1973 e 1975. Dali para a frente justamente a relação entre as duas potências, China e EUA vai ter várias fases e aí se pode acompanhar os acontecimentos em relatos de História Contemporânea.

Eu vejo como pequena a possibilidade de democratização da China em moldes ocidentais, porque são pelo menos cinco mil anos de uma história de centralização do poder, mas também porque atualmente a modernização do país tem sido favorável  às pessoas comuns, ao povo em geral. Os governos de Hu Jintao e agora de Xi Jinping não são excludentes, eles apostaram e apostam na inclusão dos chineses, com grande ênfase na inclusão pela educação, pela modernidade. 

É esse esforço de inclusão que faz toda a diferença para que, apesar de todo o seu autoritarismo, o governo tenha um considerável apoio popular. Não estou defendendo a autocracia contra a democracia, apenas tentando entender o contexto político do país sem enxergá-lo com as lentes de quem está de fora. E sem considerar que as mesmas soluções e modelos políticos possam ser aplicados a todas as sociedades de maneira indiscriminada.


No entanto, é importante considerar que o atual governo do Xi Jinping é muito mais centralizador e mesmo controlador do que foi o do seu antecessor Hu Jintao.  Segundo alguns observadores na própria China, ele estaria sendo muito bem sucedido na melhoria das condições de vida da população e, para tal,  deixaria as colocações de abertura política para bem mais adiante, depois que tivesse havido um avanço econômico interno maior. Claro que isso pode dar errado, mas não há consenso sobre se haverá ou não algum levante da população  como ocorreu em 1989. O fato de que as condições de habitação melhoraram muito e houve também avanço na renda dos chineses faz com que a maioria se desinteresse por política. Outro dado interessante é que os chineses podem viajar para o exterior praticamente sem restrições. O governo chinês não fechou suas fronteiras, a China não é uma Cuba e muito menos o que foi a União Soviética. Tudo isso torna as nossas previsões muito frágeis. Eu não me aventura a dizer o que vai ocorrer nos próximos anos." Carmen Lícia Palazzo.