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domingo, 2 de maio de 2021

O Brasil e a frustrada invasão de Cuba em 1961 pelos exilados cubanos orquestrados pela CIA - André Duchiade, James Hershberg e Joseph Zelikow (National Security Archive)

Documentos indicam que João Goulart atuou como mediador secreto entre Kennedy e Fidel Castro

A pedido de Washington, governo brasileiro tomou medidas para evitar execuções de prisioneiros da fracassada invasão da Baía dos Porcos, revelam telegramas descobertos por historiador americano; independência da política externa da época qualificou o Brasil como intermediário

André Duchiade

O Globo, 29/04/2021 - 18:17 / Atualizado em 29/04/2021 - 22:16

https://oglobo.globo.com/mundo/documentos-indicam-que-joao-goulart-atuou-como-mediador-secreto-entre-kennedy-fidel-castro-1-24994882

Em abril de 1962, um ano depois da fracassada tentativa de invasão da Baía dos Porcos por exilados cubanos patrocinados pelos EUA, o então presidente brasileiro João Goulart atendeu a um pedido do seu homólogo americano John F. Kennedy e intercedeu junto ao líder cubano Fidel Castro para evitar as execuções dos 1.200 prisioneiros envolvidos na operação.

A descoberta foi revelada nesta quinta-feira pelo National Security Archive, instituição de pesquisa ligada à Universidade de George Washington, e tem como fontes documentos inéditos do Itamaraty, do Departamento de Estado americano e (minoritariamente) de Cuba. A pesquisa foi conduzida pelo historiador James Hershberg, da mesma universidade.

Os telegramas secretos, analisados em um artigo publicado no mês em que a tentativa de invasão completa 60 anos, permitem vislumbrar como o Brasil atuou sigilosamente como intermediário entre Washington e Havana em um momento de rompimento diplomático total entre as duas capitais. Também permitem entender como a posição de independência internacional do Brasil permitiu que o país exercesse influência frente aos dois governos, desempenhando importante papel para evitar um conflito.

O estudo se centra em um curto período, entre o final de março e o começo de abril de 1962, quando Havana se preparava para levar a um tribunal especial os 1.179 prisioneiros envolvidos na operação, que enfrentavam acusações de traição e poderiam ser condenados à morte. Kennedy, que herdara os planos da invasão de seu antecessor Dwight Eisenhower, tinha grande interesse na libertação dos detidos, e tentou interceder buscando canais com a então Tchecoslováquia, o Vaticano, o Chile e o México.

Segundo Hershberg, o “Brasil desempenhava um papel especial — não apenas por seu tamanho e importância na América do Sul, mas porque seu líder, o presidente João Goulart, do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), de centro-esquerda, estava prestes a visitar os Estados Unidos para uma cúpula com presidente Kennedy no início de abril, e buscava obter ajuda econômica dos EUA — e, portanto, tinha um incentivo para fazer um favor a Washington”.

A pesquisa ressalta outro fator que punha o Brasil em posição privilegiada para mediar essa negociação: “Goulart e seu ministro das Relações Exteriores, San Tiago Dantas, tinham preservado laços amigáveis com Havana ao resistir fortemente à pressão dos EUA por severas sanções anti-Cuba”, sobretudo na conferência de chanceleres da OEA no Uruguai em janeiro daquele ano. Na conferência, Cuba foi suspensa da organização, e o Brasil se absteve na votação.

O contato inicial com o governo brasileiro foi feito a partir de Roberto Campos, então embaixador em Washington, que foi contatado, no dia 23 de março, por José Miró, ex-primeiro-ministro cubano, líder da oposição no exílio a Fidel e colaborador da CIA. Naquela mesma noite, o Itamaraty ordenou ao embaixador em Cuba, Luiz Bastian Pinto, que comunicasse imediatamente ao governo de Havana que Brasília desejava o adiamento do julgamento por 30 dias — prazo necessário para Goulart empreender a sua viagem a Washington.

No dia 27 de março, o chanceler cubano Raúl Roa respondeu ao enviado brasileiro que adiar o julgamento não era uma opção, pois anularia uma decisão governamental “de grande gravidade”. Roa incluiu no entanto uma ressalva: “Cuba responderia afirmativamente se Goulart fizesse um apelo público de clemência”, no qual se referisse explicitamente à "magnanimidade ou generosidade" dos "vencedores". Havana, acrescentou, "não responderia a nenhum tipo de apelo feito por qualquer chefe de Estado que não o presidente Goulart".

O julgamento, conduzido em uma fortaleza colonial do século XVIII, começou dois dias depois, uma quinta-feira. Na sexta, o encarregado de negócios americano no Brasil, Niles Bond, que atuava como embaixador em exercício, tomou conhecimento, por meio de informantes no Itamaraty, das exigências cubanas. Em um telegrama a Washington, ele disse que Havana via a iniciativa brasileira com “simpatia”, mas impusera “uma pura chantagem” como condição para ceder. A resposta cubana, disse Bond, fora recebida “com profunda irritação” pelo governo brasileiro, “incluindo o próprio presidente”.

O avanço do julgamento, no entanto, reforçou a preocupação americana, que intensificou os contatos com Campos em Washington. Um comunicado do conselheiro de Kennedy Richard Goodwin transmitido à embaixada brasileira afirmava que “além dos motivos humanitários para evitar a execução de prisioneiros, o presidente Kennedy se preocupa [com] o efeito exacerbante que a execução pode ter na opinião pública americana, [que vinha] ficando mais tranquila e menos emocional em relação a Cuba". A mensagem foi recebida pelo governo brasileiro como um recado direto de Kennedy.

Segundo o estudo do National Security Archive, “apesar de aparentemente se ressentir das condições cubanas anteriores, Goulart, prestes a visitar Washington, dificilmente podia resistir ao apelo interpresidencial direto de Kennedy, transmitido por seu associado íntimo, do topo dos EUA”. A embaixada respondeu que o chanceler San Tiago Dantas estava redigindo um texto a ser assinado por Goulart com um pedido público por clemência.

A carta de Jango, destinada ao presidente cubano Osvaldo Dorticós e ao então premier Fidel, foi enviada no dia 2 de abril, mesmo dia em que ele embarcou rumo a Washington, sendo distribuída também a jornais brasileiros. Sem que os EUA soubessem, a missiva fora cuidadosamente redigida para atender às condições impostas por Havana, incluindo referências à "magnanimidade" e à “vitória” cubana:

“Movido por sentimentos de solidariedade humana que unem todos os povos americanos, tomo a liberdade de dirigir a vossas excelências um apelo de todo o povo brasileiro para que a magnanimidade seja fator decisivo na condenação de pessoas presas na praia de Girón por ocasião de invasão a Cuba”, dizia o texto. “Estou certo de que vossas excelências cuidarão desse assunto conduzido com a clemência que sempre caracteriza a atitude do vencedor para com o irmão derrotado”.

A resposta pública de Havana veio dois dias depois. Dizia que o país esperara por uma indenização americana em função da invasão, que não viera. Acrescentava que, embora o processo fosse avançar, o “apelo à magnanimidade da Cuba revolucionária, em nome do povo brasileiro, e no momento em que se prepara a nação soberana de Cuba para julgar os fatos, pesará muito na mente do povo e do tribunal que tem a decisão em suas mãos”.

A sentença veio no domingo seguinte, 8 de abril, enquanto Goulart viajava pelos Estados Unidos após se encontrar com Kennedy. Os invasores foram considerados culpados, mas escaparam da pena de morte: a sentença era de 30 anos de prisão, ou uma indenização de US$ 62 milhões. A ditadura cubana evitara matar os prisioneiros, deixando uma porta aberta para obter recursos importantes ao novo regime, que de fato viriam mais tarde: em dezembro, os prisioneiros seriam libertados em troca de US$ 53 milhões em comida, remédios e outros itens humanitários.

O estudo cita ainda uma outra informação não confirmada: no dia 12 de abril, os colunistas de Washington Robert Allen e Paul Scott publicaram no Miami News que Goulart havia enviado uma mensagem secreta a Fidel Castro, na qual teria citado “um apelo de emergência de Washington”. O texto acrescentava que Goulart teria dito a Fidel que, se as vidas dos prisioneiros fossem poupadas, “Kennedy continuaria a seguir uma política de 'não intervenção' estrita nos assuntos internos de Cuba". A previsão se provou falsa; ainda em março, Kennedy aprovou a operação Mongoose, com o objetivo de derrubar o regime cubano.

No final do artigo, o historiador Hershberg afirma que o episódio “ofereceu ao governo Kennedy um lembrete oportuno da utilidade potencial da Embaixada do Brasil em Havana — ao contrário dos desejos de alguns funcionários linha-dura dos EUA, que preferiam que o Brasil simplesmente cortasse relações diplomáticas com Cuba”.

Em outubro de 1962, Kennedy ainda buscaria intermediação diplomática do Brasil durante a crise dos mísseis nucleares. As relações entre as partes se deterioriam com o tempo, e, em 1963, Kennedy consideraria apoiar um golpe contra Jango, para evitar "o surgimento de uma nova Cuba no hemisfério". A utilidade do Brasil para negociar com Havana chegaria ao fim com o golpe de 1964, apoiado por Washington.

Segundo Hershberg, antes disso, contudo, o Brasil “pode ter desempenhado um papel importante na limitação do confronto entre EUA e Cuba em um momento perigoso, influenciando Fidel a salvaguardar e, eventualmente, libertar os prisioneiros da Baía dos Porcos (...) evitando assim um ato que poderia muito bem ter desencadeado uma crise e potencialmente uma intervenção militar dos EUA 

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Zelikow response to National Security Archive: Saving the Bay of Pigs Prisoners: Did JFK Send a Secret Warning to Fidel Castro – through Brazil?

by Philip Zelikow
H-Diplo, May 1, 2021

Jim Hershberg's useful documentary compilation adds important context to a critical, yet largely overlooked, episode in President John F. Kennedy's thinking about Fidel Castro and Cuba in March-April 1962. At this time Kennedy made it clear to the leader of the Cuban exiles that the U.S. would not invade Cuba to help them overthrow Castro's government. This news deflated hopes among the exiles, causing considerable anger. Hershberg's work adds a vital clue about why Kennedy took this stance at that time.

In the National Security Archive's new briefing book (#758, 29 April 2021), Hershberg posts documents explaining that, in late March 1962, Kennedy and his key Latin American aide, Dick Goodwin, were very concerned that Castro's government was about to execute a group of Cuban rebels that had been captured in the failed CIA-sponsored invasion of Cuba at the Bay of Pigs in April 1961. These executions would inflame American opinion against Castro. 

On March 16, Kennedy reviewed the guidelines for the CIA program against Castro, Operation Mongoose, He allowed contingency plans to proceed but "expressed skepticism that in so far as can now be foreseen circumstances will arise that would justify and make desirable the use of American forces for overt military action." [Ed. note, "Guidelines for Operation Mongoose," _FRUS_ 1961-1963, vol. 10, doc. 314]. 

On March 28 or 29, the head of the Cuban exiles and their Cuban Revolutionary Council, Jose Miro Cardona, met at the White House with Kennedy's national security adviser, McGeorge Bundy. Hershberg notes this meeting and their discussion about Castro's possible execution of the captives. Cardona and his colleagues pleaded for enough help to invade Cuba and overthrow Castro. Bundy pushed back. He told them that any such action had to be decisive and complete. That meant open involvement of U.S. armed forces. "This," he said, "would mean open war against Cuba which in the U.S. judgment was not advisable in the present international situation." Cardona did not like this answer. He regarded Bundy's stance as "polite but cold." [Memcon, 29 March 1962, _FRUS_ 1961-1963, vol. 10, doc. 317 (drafted on March 13, according to the _FRUS_ editors, but this seems unlikely; Cardona, the next year, dated the meeting as occurring on March 28); Cardona resignation letter, 9 April 1963, Wilson Center Digital Archive]. 

On March 29, there was a meeting of the overseers of the CIA Mongoose program. This was a disagreeable meeting in which it was agreed that the U.S. might arrange some deal to get release of the Cuban captives, offering U.S. supplies of food. This decision overrode the objections of the CIA director, John McCone, and the CIA's Mongoose manager, William Harvey. McCone was frustrated at this time, pushing for American military intervention in Cuba. [Memo for the Record, _FRUS_, vol. 10, doc. 318, also doc 319].

Enter Hershberg's findings. Hershberg explains that Dick Goodwin (whom the Cuban exiles disliked) was managing the issue of how to save the captives. The same day, March 29, Bundy and Goodwin agreed that Goodwin would approach Brazil's leader, who was about to visit the White House, and seek his help. Goodwin worked this through the Brazilian ambassador on March 30. In that meeting, Goodwin explained how the executions of the captives would inflame American opinion at a time when Kennedy felt American opinion was "getting more tranquil and less emotional in relation to Cuba." [Hershberg text accompanying note 27, referring to doc. 9 in his EBB].

On April 2, Brazil's president, Joao Goulart, publicly appealed to Castro to spare the captives. Hershberg notes that a pair of journalists for the _Miami News_ later disclosed that this public appeal was accompanied by a secret message from Brazil to Cuba, coming out of the Goodwin channel. In this secret message, the Brazilians reportedly relayed Goodwin's message that execution might cause a harsh U.S. reaction, while clemency might tilt Kennedy against intervention. [Hershberg text accompanying notes 34-37].

On April 8, Cuba announced the sentence -- the captives would be spared. What later ensued was a set of negotiations involving the U.S. lawyer James Donovan, working with Goodwin, that did eventually produce a deal that exchanged American goods for the release of the Cuban captives.

Hershberg speculates about the significance of this secret U.S. offer relayed through Brazil. But he does not comment on the immediate sequel, which certainly adds credence to his speculation.

Two other journalists at the _Miami News_ had arranged for the frustrated head of the Cuban exiles, Cardona, to meet with Robert Kennedy. He promised help on the captives. He arranged for Cardona and his colleagues to meet directly with President Kennedy, on April 10.

On April 10, Cardona met with JFK for an hour. Robert Kennedy and Goodwin were there. A year later, Cardona claimed that JFK had urged the Cubans to keep training their forces, that "your destiny is to suffer" but "do not waver." [Cardona resignation letter, April 1963]. Goodwin's record at the time is different. At this meeting, Kennedy specifically rebuffed Cardona's plea that the U.S. commit itself to intervene in support of another rebel invasion. [Goodwin to JFK, 14 April 1962, and Passavoy to Record, "Topics Discussed during Meeting of Dr. Miro Cardona with the President," 25 April 1962, both in NSF, box 45, Cuba: Subjects, Miro Cardona, Material sent to Palm Beach, JFK Library]. The _FRUS_ editors unfortunately did not include these documents, which record the only meeting in 1962 between JFK and the leader of the Cuban exiles. I published this information in 1999 [_Essence of Decision_, Pearson, revised edition, with Graham Allison, 84 and 132, n. 26) and 2000 ("American Policy in Cuba, 1961-1963," _Diplomatic History_, 24:2, 321)].

There is no question that Kennedy's deflating message to Cardona reinforced what the State Department's Cuban desk officer called the "deep sense of frustration and impatience" in the Cuban exile community "over what it considers 'inactivity' regarding the overthrow of the Castro regime." Cardona came under internal attack because he had "failed to convince the United States to embark on a military operations program." Cardona considered resigning. [Hurwitch to Martin, 19 April 1962, _FRUS_, doc. 329].

In sum, if Hershberg's findings are added to the wider context -- Kennedy's March-April 1962 rejection of both Cuban exile and CIA pleas for a more aggressive U.S. policy against Castro -- his hypothesis seems right. Kennedy, through Goodwin and with the help of the Brazilians, does appear to have communicated, accurately, that Castro's decision on whether to spare the captives was coming at a pivotal moment in U.S. policy, and could reinforce a growing trend against direct U.S. intervention.

It is also important to notice that Castro's intelligence service had penetrated the Cuban exile community and therefore was presumably well aware of their unease and frustration about U.S. plans. According to senior former Cuban intelligence officials, at this time, in April-May 1962, Cuban intelligence concluded that it did not fear a U.S. invasion of Cuba. And the Soviet leadership had already approved, on April 12, a strong defensive arms package for Cuba, despite Castro's actions against the pro-Soviet leader of Cuba's Communist Party. 

Thus, when Khrushchev decided more than a month later, at the end of May, to deploy a force of ballistic missiles to Cuba, Castro assumed that the Soviet leader was doing this for other, global, reasons. I have argued elsewhere that these had much to do with the final phase of the Berlin crisis. This background helps explain why the KGB resident in Havana thought Castro would say no to the Soviet missile request. But, in fact, Castro was willing to take the missiles out of a sense of socialist solidarity. [On the Cuban intelligence views, see Domingo Amuchastegui, "Cuban Intelligence and the October Crisis," in James Blight and David Welch, eds., _Intelligence and the Cuban Missile Crisis_ (Routledge, 1988); see generally the revised _Essence of Decision_, 84-88, including the cited recollections of Fidel Castro himself and other Cuban leaders compiled between 1989 and 1992]. 

Hershberg's findings about the U.S.-Brazilian diplomacy and Castro's well-judged decision to spare the Bay of Pigs captives thus add an important new layer of understanding to this fascinating story.

Philip Zelikow
University of Virginia


domingo, 10 de janeiro de 2021

12) Ano Merquior (12): discurso de formatura da turma de 1963 do Instituto Rio Branco

 Em 1963, já identificado como o mais brilhante da sua turma (1961-63), tendo publicado diversos artigos e pelo menos um livro, sobre temas literários, José Guilherme Merquior foi escolhido, naturalmente, como orador da turma do Instituto Rio Branco, cujo paraninfo foi o chanceler San Tiago Dantas. 



Destaco, da brochura de 1993, que publicou ensaios de seus amigos e colegas que o homenagearam um ano depois de sua morte, em janeiro de 1991, o texto do seu discurso de formatura, que é uma peça da mais refinada erudição, da qual destaco simplesmente dois conceitos: Realismo e Racionalidade, que podem ser considerados as duas vigas mestras de Merquior em TODA a sua produção intelectual, e que também marcaram a trajetória do paraninfo, San Tiago Dantas, que como também aconteceria com Merquior, teria uma morte precoce, pelo mesmo mal, um câncer fulminante.

O discurso é uma aula de cultura histórica, de reflexão filosófica, de reflexão sociológica sobre o papel da juventude no desempenho de suas funções profissionais a serviço do país. Merquior estava plenamente identificado com os ideais e objetivos da Política Externa Independente, de afirmação do objetivo maior do desenvolvimento nacional com plena autonomia decisória na política interna e, a mais forte razão, na política externa. 

Por isso se temeu que ele fosse cassado a sobreviver o golpe militar de abril de 1964, inclusive porque, em setembro seguinte, quando faleceu San Tiago Dantas, ele preparou um artigo necrológico, um obituário intelectual que, disciplinadamente foi enviado para autorização do chanceler Vasco Leitão da Cunha, que NUNCA teve resposta. Caberia buscar essa peça em seus escritos.

Os interessados neste discurso, podem acessar este link: 

https://www.academia.edu/44871698/Discurso_de_José_Guilherme_Merquior_como_orador_na_formatura_da_turma_do_IRBr_1963_ 



quinta-feira, 24 de outubro de 2019

San Tiago Dantas e a PEI segundo o atual chanceler

Apenas copio e transcrevo, sem comentários (não precisa), a sucessão de twites do atual chanceler sobre um outro chanceler:


San Tiago Dantas e a PEI segundo EA

1/Um colunista disse por aí que eu mandei tirar o busto de San Tiago Dantas da sala que leva esse nome no Itamaraty. É fake news. Não mandei. Mas podia ter mandado.

2/Dantas foi o iniciador da "Política Externa Independente" (PEI) no final dos anos 50 e início dos 60, que virou o fetiche do establishment brasileiro de política externa desde então.

3/Em que consistia a "Política Externa Independente"? Afastar-se dos EUA e da aliança das democracias liberais ocidentais e bajular o bloco comunista sem dar muito na vista.

4/A PEI deu início a décadas de política externa ideológica mais ou menos disfarçada que nunca trouxe nada ao Brasil - exceto elogios de comunistas e globalistas, para quem um Brasil hipnotizado na mediocridade era muito conveniente, ajudando a formar massa de manobra.

5/A política externa brasileira acostumou-se a defender interesses fictícios, do tipo "ordem global", enquanto os principais atores internacionais defendem seus interesses concretos e seus valores constitutivos (bons ou maus).

6/Passamos décadas fazendo política externa não a partir do que somos enquanto nação, mas a partir de como queremos ser vistos pelos analistas bem-pensantes que escrevem na Foreign Affairs.

7/A "independência" de nossa política externa pendia sempre para um lado. Sempre, no final do dia, acabávamos carregando água para o moinho da esquerda.

8/Orwell já mostrou: aquilo que os comunistas chamam de "paz" é a guerra e o que chamam de "amor" é o ódio. Do mesmo modo, chamam de "política externa independente" a política de seguir a manada esquerdista.

9/O que querem hoje os saudosistas da PEI? Que voltemos a bajular os regimes totalitários e mandar-lhes dinheiro, ou pelo menos tolerá-los e não criar-lhes problema, sob o manto da "independência".

10/Querem que façamos vista grossa ao Foro de São Paulo e sua insana aposta de recuperar o poder através da violência, da manipulação, do crime, da corrupção e da fraude.

11/Eles querem o busto de Santiago Dantas. Nós  queremos um Brasil grande dentro de uma América do Sul livre e próspera, sem a rede de corrupção lulista-kirchnerista-chavista que jurou de morte as nossas repúblicas.

12/Na mente pobre e raivosa dos saudosistas da PEI há um interesse muito claro: rebaixar o Brasil. Querem tirar o Brasil do caminho para que o Foro de São Paulo possa avançar desimpedido com sua sanha destrutiva.

13/Querem remover o Brasil da coluna das democracias e nos devolver à coluna do meio, o reino da indiferença pusilânime, para daí passar em seguida à coluna dos totalitarismos.

14/O Brasil não nasceu para ser coluna do meio. Nossa política externa, hoje, está aqui para ajudar a defender aquilo em que os brasileiros acreditam, começando pela nossa própria liberdade.

15/O Brasil não nasceu para ser capacho do Foro de São Paulo. O busto de Santiago Dantas pode até voltar, mas a política externa hipnotizada pela ideologia e facilitadora de totalitarismos não voltará.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Pedro Dutra: biografia de San Tiago Dantas (resenha-apresentação, 2014)

Livros


San Tiago Dantas - a razão vencida.

Resenhas
Valor Econômico de 30.09.2014
As variadas cores da vida política de San Tiago Dantas
 
Por Oscar Pilagallo
 
Revista Veja
          Carlos Graieb
“...Não por descuido, mas por falta de evidências, o livro é menos rico na descrição das atitudes e dos sentimentos do jovem Dantas do que na descrição de seu trabalho intelectual. Nesse ponto, contudo, é uma obra notável. ...”
Revista Veja Edição 2410 – 28 de janeiro de 2015


Editora Singular. 

Apresentação:


O homem, que muitos dizem ser o mais inteligente do Brasil, tem pressa. Assim uma reportagem na revista O Cruzeiro, a maior do País, se referia a San Tiago Dantas em 1960. Mas quem foi, ou melhor, quem é San Tiago Dantas?

Brilhante e precoce, sem dúvida. Líder estudantil aos dezessete anos, aos vinte editor de jornal e teórico fascista, um ano depois professor de Direito, a seguir prócer integralista e crítico do nazismo; catedrático aos vinte e cinco, fundador de duas faculdades e titular de três cátedras antes dos trinta anos e ainda diretor da Faculdade de Filosofia, no Rio de Janeiro. Um ano depois, em 1942, repudia publicamente o Integralismo, defende a declaração de guerra ao Eixo, propõe a união nacional das forças políticas, reunindo os comunistas inclusive, para afirmação de um regime democrático, e em 1945 elabora parecer firmado por seus colegas professores que nega fundamento jurídico à proposta continuísta do ditador Getúlio Vargas. E, explicitamente, defende substituir a propriedade privada pelo trabalho como núcleo de uma ampla reforma social.

A acusação de oportunista não demorou a lhe ser lançada, e será renovada e ampliada dez anos depois. Então, o alvo será o jovem jurisconsulto procurado por grandes empresas nacionais e estrangeiras convertido em banqueiro, que se alia aos trabalhadores ao ingressar no partido que Getúlio criara para abrigá-los; e, no início da década de 1960, ministro do Exterior, recusa-se a sancionar o novo regime cubano e reata relações diplomáticas com a União Soviética. No começo de 1964, depois de no ano anterior tentar controlar, sem êxito, a espiral inflacionária à frente do Ministério da Fazenda, já mortalmente doente, e agônica a República de 1946, tenta sensibilizar as forças partidárias e articulá-las em uma frente ampla de apoio às reformas democráticas para resgatá-las da polarização que já engolfara a política nacional. Em vão: a direita o vê como um trânsfuga, os conservadores como um ingênuo, e a esquerda desacredita os seus propósitos.

E quase todos o veem como o manipulador, senão o malversador de seus dotes intelectuais, que, diziam seus críticos, derramavam uma luz fria, que iluminava mas não aquecia, e justificavam todas as capitulações necessárias a satisfazer a sua premente ambição política. Entre essas capitulações, servir o seu talento à causa populista de líderes sindicais cevados nos cofres públicos e a um vice-presidente, depois presidente da República, cuja inépcia e tolerância com a agitação promovida pelo seu próprio partido teriam precipitado o País no descalabro administrativo e na convulsão política que teriam fermentado o golpe militar de abril de 1964.

Mas a trajetória política de San Tiago, que ele confundiu com a sua vida, autoriza ou desmente essa afirmação? Não teria ele senão buscado imprimir racionalidade e consistência ideológica ao debate político de seu tempo, nele intervindo e empenhando desassombradamente o vigor de sua inteligência, dos dezoito anos até a véspera da sua morte, há exatos cinquenta anos?

A resposta a essa questão está na história de sua vida, encerrada, precocemente também, aos cinquenta e três anos incompletos, em plena maturidade intelectual, quando já descera, em abril daquele ano de 1964, uma vez mais, a noite das liberdades públicas no País.

Este primeiro volume da biografia de Francisco Clementino de San Tiago Dantas, nascido no Rio de Janeiro em 1911, estende-se até 1945, um ano divisor em sua trajetória e também no curto século XX. Então, o jovem ideólogo da direita radical, nutrido pela reação ao legado da Revolução Francesa acrescido pela Igreja Católica e reafirmada pelo fascismo italiano, cedera lugar ao defensor de uma social-democracia nascida da dramática experiência da Segunda Guerra Mundial. O “catedrático menino” tornara-se o mestre consumado que desprezava os títulos professorais e amava os alunos e era por eles amado. E o jurisconsulto notável, que via na ciência jurídica nativa o maior entrave à realização do Direito entre nós, já encontrara na advocacia a retribuição material ao seu tenaz aprendizado, em medida raramente alcançada entre os seus pares.

Saber, ter e poder. Dessa tríade que San Tiago tomou para si como metro de sua trajetória, apenas o último elemento – o poder político – ele não alcançaria plenamente. Mas nesses primeiros trinta e quatro anos de vida ele se habilitou, como poucos antes ou depois, a buscar o fugidio poder político que o fascinara já ao pisar no pátio da Faculdade de Direito, aos dezesseis anos.

O aprendizado que lhe permitisse formular um projeto político consistente de reformas estruturais para o País – o saber; e o ter – a conquista dos meios que lhe possibilitassem cursar uma carreira política desembaraçada de sujeições materiais: reviver para o leitor de hoje essa saga invulgar na história da inteligência brasileira é o propósito e o desafio desta biografia que o Autor procura cumprir, com o lançamento deste primeiro de seus dois volumes.

Dar voz a San Tiago inscrevendo seus textos elegantes e precisos na narrativa e situando-o em seu contexto histórico mostrou-se o método indicado a descrever, com a fidelidade possível, a sua espantosa atividade intelectual. Nesse sentido, o recuo no tempo se impôs para identificar as suas origens familiares, cujo exemplo ele exaltava, e para mapear as matrizes ideológicas que cedo San Tiago se esforçou por dominar e o inspiraram a primeiro defender a “moderna obra da reação”: a Revolução Francesa e a reação às suas conquistas; o surgimento da nova direita no começo do século XX, precedendo as revoluções bolchevista, fascista e nazista; e, no rastro sangrento da Primeira Guerra Mundial, o embate ideológico que levaria à Segunda em 1939.

Ao jovem ideólogo somou-se o “catedrático menino” que não frequentou regularmente o ginásio e pouco frequentou a Faculdade de Direito, porém desde cedo acumulou espantosos e sucessivos “tempos de estudo” mais tarde desdobrados inclusive em aulas célebres transcritas em apostilas e ainda hoje, oito décadas depois, editadas em livro.

E sobre essas qualidades inegáveis, sobre a admiração e as controvérsias que se acenderam à sua trajetória, esse homem naturalmente grave e professoral difundia um afeto generoso e franco pela família, vendo nos sobrinhos, sempre próximos, os filhos que não pôde ter, e tendo nos amigos da escola os companheiros inseparáveis de toda a vida.

“De muitos, um”, dizia o sinete que San Tiago estampava em seus livros. Essa síntese ele procurou retirar das ideias e viveu plenamente essa busca, aprendendo para ensinar, ensinando para esclarecer, esclarecendo para transformar. E, no entanto, o poder político não foi alcançado. Mas San Tiago deixou a sua saga intelectual a crédito da história de seu País.


Pedro Dutra: premio da Academia Brasileira de Letras pela biografia de San Tiago Dantas (2015)

Transcrevo do blog do advogado do advogado Pedro Dutra, com data de 2/10/2015:

Agradecimento na recepção do prêmio Senador José Ermírio de Moraes




Excelentíssimo Senhor Presidente da Academia Brasileira de Letras, Acadêmico Geraldo Holanda Cavalcanti.

Excelentíssimo Senhor Presidente da Comissão do Prêmio Senador José Ermírio de Moraes – Acadêmico Marcos Vilaça.

Excelentíssimo Senhor Relator da Comissão do Prêmio Senador José Ermírio de Moraes – Acadêmico Alberto Venâncio Filho.

Excelentíssimas Senhoras Acadêmicas.

Excelentíssimos Senhores Acadêmicos.

Excelentíssimo Senhor Professor José Pastore, digno representante do Instituto Votorantim.

Senhoras e Senhores.

O prêmio Senador José Ermírio de Moraes, que essa Academia vem de outorgar àA Razão Vencida, é uma generosa retribuição ao esforço de seu Autor.

Mas este prêmio tem um outro – e maior – destinatário: Francisco Clementino de San Tiago Dantas.

1.0. Cumprindo mandato de deputado federal, no início de 1964 San Tiago tentou unir, em uma frente parlamentar, as forças políticas de sustentação do presidente da república, João Goulart. Estava San Tiago advertido de que a extremação ideológica em curso, aprofundando o dissídio entre as correntes de direita e de esquerda, iria ter o seu desfecho, como veio a ter, na ruptura da ordem democrática.

Então, a doença já o visitara, e ele sabia contados os seus dias, assim como vencidos estavam os seus dias no poder, breves, mas superiormente exercidos, em meio a maior crise política vivida na frágil república de 1946.

Por essa altura, San Tiago buscou a Academia, onde contava com inúmeros amigos de mocidade, entre eles, Alceu Amoroso Lima e Afonso Arinos; e, ainda hoje, conta nessa Casa com seus jovens amigos, o crítico literário Eduardo Portella e o advogado Alberto Venâncio Filho.

San Tiago formalizou a sua postulação e cumpriu os procedimentos de praxe. Mas a eleição realizou-se a dois de abril de 1964, já vitorioso o golpe militar e deposto o governo João Goulart.

E o nome de San Tiago não alcançou a maioria necessária à sua admissão a essa Casa. Meses depois, a 6 de setembro, morria, aos 53 anos incompletos.

2.0. Não foi a Academia Brasileira de Letras a única Casa a lhe recusar ingresso. Em junho de 1962, os seus pares na Câmara de Deputados lhe haviam negado a chefia do gabinete, no curto interregno parlamentar então aberto na vida política nacional.

O regime parlamentar surdira de um golpe: os militares, estimulados por radicais da UDN, negavam posse ao vice-presidente João Goulart, alegando a sua simpatia e leniência às forças de esquerda, em sequência à renúncia de Jânio Quadros.

Ao aceitar a implantação do regime parlamentarista em troca de sua posse na presidência da república, Jango começou a trabalhar contra a sobrevivência desse regime. E nesse ofício contou com apoio de candidatos que já abertamente postulavam a sua sucessão.

No turbilhão em que a vida política do país se transformou, San Tiago distinguia-se: era um homem de Estado.

3.0. Tinha ele a noção moderna da democracia renovada pelos valores apurados pela experiência dramática da Segunda Guerra.  E entre esses valores renovados, San Tiago reclamava fosse assegurada ao trabalho a mesma ordem de garantias jurídicas havia muito o nosso Direito já assegurava ao capital.

Essa reforma seria a nutriz de outras reformas estruturais, mas estas reformas não poderiam ser, como observou, “ocasionadas pela avulsão de certos valores, pela eclosão revolucionária”; ao contrário, elas deveriam ser, todas elas, debatidas com a sociedade e aprovadas pelo Congresso.

San Tiago mirava as reformas das principais instituições político-jurídicas do país, e estava ciente das palavras de Rui Barbosa, a quem votava justa admiração: a República “não é uma série de fórmulas, mas um conjunto de instituições, cuja realidade se afirma pela sua sinceridade no respeito às leis e na obediência à justiça”.

O homem de Estado era, e é, uma figura estranha à política nacional. Esta, mesmo quando contou com razoável número de parlamentares talentosos, o que certamente não é o caso hoje a ocorrer, não conseguiu afirmar linhas ideológicas, que reclamassem aos partidos a elaboração e a defesa de programas de governo consistentes, a serem oferecidos à consideração do eleitor.

Antes, a política nacional atrai, quando não o celebra, o político que opera distante de temas e de ideias, e sobretudo de procedimentos, que consultem os interesses maiores do Estado brasileiro.

Nesse contexto, em que a ação política é reduzida à destreza em manipular as cordas do governo e o Tesouro Nacional, não surpreende San Tiago ter sido visto como um adversário da cultura política nativa. E, assim, negar-lhe a investidura na chefia do gabinete afigurou-se um imperativo inafastável à maioria dos deputados, para ser evitado o risco de ele conduzir a nação ao regime parlamentar.

San Tiago estava ciente da desconfiança que o seu nome suscitava, ainda que publicamente exibisse a crença em sua aprovação. Defendeu a sua indicação, apresentando, em um dos mais notáveis discursos feitos ao plenário da Câmara dos Deputados, o seu programa de governo, cujo núcleo seria as reformas de estrutura do Estado brasileiro, muitas delas até hoje reclamadas.

A derrota sofrida na Câmara dos Deputados não o desencantou. Já muito doente, serviu ao país à frente do Ministério da Fazenda no primeiro semestre de 1963, buscando a um só tempo combater a inflação e reanimar a economia.

Mas não achou o apoio da classe política; o seu próprio partido, então liderado por Leonel Brizola, somou-se à oposição tradicional da UDN ao governo e promoveu uma agitação social sem precedentes, precipitando o país em uma crise cujo desfecho, dali a pouco, poria termo à ordem democrática.

4.0. Qual o legado desse fidalgo da inteligência, do mestre da sua geração, do advogado excepcional? Qual o legado desse raro homem de Estado, talhado para o exercício superior do poder, mas que acumulou sucessivas derrotas políticas? Qual o legado desse escritor extraordinário, de um estilo de uma severa simplicidade, onde não sobram adjetivos, não se acha o verbo mais exato e não se tem a síntese mais justa?

Não há uma resposta única e precisa, ao se lidar com uma personalidade tão rica e complexa, mas a sua obra pode nos indicar caminhos. Ela é uma obra de circunstância, produto da sua ação múltipla, de professor, de advogado, de jurista, de político, de ensaísta, atividades exercidas simultaneamente, incansavelmente, excelentemente.

A maior parte dessa obra notável está por publicar, e deve compor, como esperamos, os escritos já conhecidos. A esses trabalhos soma-se a sua correspondência, extraordinária pela sua riqueza documental, e é sem dúvida uma obra literária superior.

Nela surge o homem austero e grave, que amava a família e via nos sobrinhos os filhos que não pode ter, e era o companheiro fiel cujos amigos de mocidade com ele estiveram até a última hora.

5.0. O percurso ideológico de San Tiago é riquíssimo, e traz o selo da coerência e do desassombro, como mostram os seus escritos.

Defendeu suas ideias energicamente, publicamente. Foi capaz de rejeitar aquela que primeiro abraçou ao vê-la infiel aos propósitos que ele, como tantos outros, aspirou ver realizados.

Passou a defender uma ordem social democrática, onde o trabalho e o capital se alinhassem em um mesmo plano de direitos e deveres.

Um dos maiores advogados do país e um intelectual justamente respeitado, não hesitou em buscar infundir ao trabalhismo brasileiro – atrelado ao Estado e cevado por suas verbas – as ideias reformistas do trabalhismo britânico, que no poder transformara a vida social e econômica daquele país.

Ao ver de San Tiago, a política não é um conjunto de ações mecanicamente executadas. Ela deve desdobrar, congruentemente, ideias nascidas pela consulta à realidade e aos valores de cada país.

Em um de seus notáveis ensaios, San Tiago desenhou o seu perfil político, ao traçar o de Rui Barbosa: “todo o verdadeiro grande homem, observou, é um ideólogo: seus pensamentos, sua vida pública, vestiram certos imperativos da existência brasileira, deram forma e teoria a impulsos vitais, que se formaram na sociedade de seu tempo”.

Em uma de suas notas pessoais, San Tiago escreveu que sabia ter a inteligência de um grande homem, mas não era um grande homem, pois a sua inteligência ainda não encontrara um norte ao qual deveria concentrar-se.

San Tiago enganou-se, como tantas outras vezes ao falar de si próprio.

A sua luta política, de maior projeção, não durou mais de cinco anos; e, como a de nenhum outro grande politico brasileiro, à exceção de Rui Barbosa, levantou tanta incompreensão, tanta crítica, mesmo daqueles que o admiravam.

San Tiago estaria fora de seu lugar. Aquele homem refinadíssimo, tendo à sua disposição todos os favores materiais que o seu talento reunira, e era uma das máximas expressões da elite do país, assombrava a todos ao defender a causa trabalhista, em meio aqueles que a agitavam com um discurso populista, frenético e irresponsável.

Mas a sua determinação era inabalável. Ali ele deveria estar, pois, como a entendia, “o dever da inteligência é esclarecer”.

San Tiago era um homem só, na política brasileira. Porém ele já se preparara para essa caminhada.

Isso nos disse ainda em 1947 em seu ensaio sobre a obra maior de Cervantes. No cavaleiro manchego, em sua insânia, na entrega delirante a tarefas irrealizáveis, San Tiago viu “o dom de si mesmo”, isto é, o domínio integral sobre a própria existência, subtraindo o cavaleiro ao destino o seu comando.

Contudo, o heroísmo do Quixote é frustro, e ele só pode ser compreendido reversamente, não pelo seu “resultado imediato alcançado, mas pela repercussão do exemplo”. Esse exemplo, diz San Tiago, é o heroísmo qualificado, paradoxalmente, pelo aparente fracasso da empreitada: os atos malogrados do Quixote são recebidos “a crédito, para compensação das injustiças e agravos que ele não soube ver, nem reparar”, nas palavras do próprio San Tiago.

O dom de si mesmo restitui ao homem a sua liberdade suprema, que só a pureza da ação que não busca crédito pode dar, e, por isso, é capaz de frutificar em exemplos transcendentes; o “dom de si mesmo”, conclui San Tiago, “resolve o problema do destino, vence as hesitações que o temor do erro tanto nos infunde, e, fazendo-nos olhar para fora de nós, permite que, um dia, nos reencontremos”.

Estamos certos de que San Tiago reencontra-se a si mesmo nessa Casa, neste dia de hoje.

Muito obrigado.

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

San Tiago Dantas, antes de se tornar "diplomata" - Escritos Politicos, 1929-1945


O mesmo autor está escrevendo a biografia de San Tiago Dantas, e já publicou o primeiro volume, relativo à primeira fase de sua vida, como estudante, professor, advogado, antes de se tornar o tribuno, o político, e o "diplomata" que foi, numa segunda fase, infelizmente precocemente final, de sua vida, no final dos anos 1950 e início dos 60 (ele morreu em setembro de 1964, depois de ter sido chanceler e ministro da Fazenda).
 

Lançamento: ESCRITOS POLÍTICOS 1929-1945 de San Tiago Dantas
Organizado por Pedro Dutra
Data: 18 de novembro de 2016 (sexta-feira)
Horário: 19h
Local: Livraria da Travessa do Shopping Leblon,
           Av. Afrânio de Melo Franco, 290 – Rio de Janeiro



Editora Singular LtdaTel/Fax: 55 11 3862-1242

quinta-feira, 7 de julho de 2016

San Tiago Dantas: um brasileiro universal - escritos estão sendo digitalizados

A obra de San Tiago está sendo digitalizada e será disponibilizada ao público em breve.
San Tiago Dantas foi o formulador, ao lado de Celso Furtado, do Plano Trienal no governo João Goulart. A derrubada do Plano do San Tiago e do Celso pela esquerda inconsequente praticamente selou o destino do governo reformista do Jango, afastando a última possibilidade que ainda havia de consolidar um governo voltado para as chamadas - à época- “reformas de base” de caráter estrutural e desenvolvimentistas.
Maurício David

O futuro do passado de San Tiago Dantas
Dulce Quental


Dulce, aos 3 anos, sua mãe, Maria Helena, e San Tiago no jardim da casa deste em Botafogo, no Rio, em 1963

Quando eu ainda era uma garotinha, já ouvia falar nele. Aos dois anos, já sabia que aquele homem era alguém importante pelo modo como os adultos o reverenciavam. Figura central no universo particular de uma família de oito sobrinhos, Francisco Clementino San Tiago Dantas nasceu no Rio de Janeiro, em 30 de outubro de 1911.

Não teve filhos, por isso tratou como seus os sobrinhos, filhos da irmã, Dulce, de quem herdei o nome. Meu pai era o segundo da escadinha, logo após meu tio Raul. Depois vinham: Lucia, Inês, Tote, Francisco, Violeta e João, cada um com seus filhos, o que fazia dos Natais na antiga casa da rua Araucária, no Jardim Botânico, uma festa.

Só mais tarde descobri quem ele havia sido, pois morrera precocemente aos 53 anos, vítima de um câncer. "Seu tio-avô foi um dos homens mais inteligentes e brilhantes que esse país já conheceu", me disse o embaixador Marcílio Marques Moreira, herdeiro do pensamento de San Tiago e responsável por inúmeras homenagens a ele nos últimos anos. Uma em especial me vem à cabeça, ligada também à memória do meu pai, Felippe.

Marcílio convidou meu pai, em 1978, a selecionar com ele os discursos de San Tiago proferidos na Câmara dos Deputados. Ser sobrinho e com experiência em jornal fazia dele a pessoa ideal para organizar o livro, pois trabalhara com San Tiago no "Jornal do Commercio", e viajara com minha mãe, acompanhando Edméa, sua mulher, na comitiva oficial do governo quando ocupou o Ministério do Exterior.

Lembro-me do calhamaço de papéis e atas de sessões do Congresso que invadiram a nossa casa e da curiosidade que me despertavam todas aquelas folhas. Talvez por isso meu pai tenha me convocado para ser sua ajudante. Ainda me lembro do orgulho que senti quando fui pela primeira vez à Brasília visitar a Câmera –que organizara um seminário em homenagem aos 15 anos da sua morte.

Fazer parte do mundo dos adultos, contribuir para a compilação de "Perfis Parlamentares", lançado em 1982, organizado por meu pai, e entrar na Câmara dos Deputados com direito a hino nacional era demais para uma garota com apenas 19 anos.

Anos mais tarde, fui convocada de novo. Dessa vez para ajudar a organizar a correspondência de San Tiago e Américo Lacombe. Minha função seria digitalizar o material para dar início à publicação da conversa entre eles, mas abandonei o projeto.

Nos últimos anos, muitas homenagens póstumas têm sido feitas a San Tiago, revelando a extensão da contribuição que ele legou para a política nacional como um dos ideólogos do trabalhismo democrático, e para o direito internacional.

Quem presenciou suas aulas, escutou seus discursos na Câmara ou mundo afora jamais esqueceu o orador excepcional que ele foi. Discursava em várias línguas. Não foram poucas as vezes em que ouvi a história do dia em que fez uma conferência segurando um papel que parecia ler, mas que depois se revelou ser uma folha em branco.


O diplomata Francisco Clementino San Tiago Dantas

O nome de San Tiago Dantas me vem à memória e me entristeço. O país atravessa um momento difícil, incomparável a qualquer outro. Não posso deixar de me perguntar: e se San Tiago estivesse vivo? E se o parlamentarismo tivesse sido aprovado e ele nomeado primeiro-ministro? San Tiago foi ministro das Relações Exteriores no curto governo parlamentarista de Tancredo Neves, ministro da Fazenda no governo presidencialista de João Goulart. O que homens como ele seriam capazes de fazer hoje?

San Tiago ressaltava a importância da educação como meio de ascensão social pelo saber. Para ele, era inaceitável usar o poder para conquistar o ter, ou usar o ter para ascender ao poder. Isso revela sua inteligência visionária, traduz a visão quixotesca de seu sentimento. Sua obra é premonitória. Fico me perguntando: se San Tiago estivesse vivo, o que diria de tudo isso?

Talvez possamos responder a essa pergunta acessando sua obra. Ela será disponibilizada para o público em breve, em um site que meu pai e meus tios estão preparando. Tenho certeza de que muitas das respostas de que o país precisa se encontram lá. No futuro do passado de San Tiago Dantas.

DULCE QUENTAL, 56, cantora, musicista e compositora, foi vocalista da banda pop Sempre Livre, no início da década de 1980, antes de seguir carreira solo.