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domingo, 3 de julho de 2022

Putin: His Life and Times by Philip Short - book review - Angus Macqueen (The Guardian)

 Uma biografia que tenta capturar Putin nos seus próprios termos. Só que estes são os do Império czarista, não os de uma democracia liberal. O Império americano tem muita culpa em sua hipocrisia, mas em última instância defende tais valores e princípios liberais, ainda que por vezes brutalmente.

Putin: His Life and Times by Philip Short is published by Bodley Head (£30). 

Vladimir Putin in 2004


Philip Short’s meticulous new biography forces us to look at Vladimir Putin’s most appalling acts from a Russian perspective

In his speech on the night of the invasion of Ukraine on 24 February, which Philip Short describes as “pulsating with anger and resentment” at 30 years of Russian humiliation, Putin seethed: “They deceived us… they duped us like a con artist… the whole so-called western bloc, formed by the United States in its own image is… an empire of lies.” For those who dismiss the speech and the invasion that followed as the words and actions of a man gone mad, dying or out of contact with reality due to Covid isolation, this new biography should be compulsory reading.

As Short observes, however authoritarian and corrupt modern Russia may be, “national leaders invariably reflect the society from which they come, no matter how unpalatable that thought may be to the citizens”. While his people may have been as surprised as the rest of the world at the timing, the invasion hardly came out of the blue and many Russians, not all blinded by propaganda, support it. For as the foreign minister, Sergei Lavrov, commented a couple of weeks later: “This is not actually, or at least primarily… about Ukraine. It reflects the battle over what the world order will look like. Will it be a world in which the west will lead everyone with impunity and without question?”

Running through all Putin’s thinking was a clear belief that 1991 was a catastrophe for Russia

Refreshingly, Short, in this meticulous biography of a man portrayed elsewhere as a 21st-century monster, refuses to moralise, opting instead to lay out how Putin’s recent actions can be seen as the consequence of the 30 years since the collapse of the Soviet Union. The former BBC correspondent is at his best when pushing us to see the world from a Russian perspective. The importance of this is neatly illustrated in the publisher’s own claims for the book: “What forces and experiences shaped him [Putin]? What led him to challenge the American-led world order that has kept the peace since the end of the cold war?” Short relentlessly traces the journey Putin has taken in rejecting that “peace”, the Pax Americana, the unipolar world in which, according to Russia expert Strobe Talbott, then US deputy secretary of state, “the US was acting as though it had the right to impose its view on the world”. From Moscow, Putin watched the US openly intervene in elections whenever it chose, encourage the break-up of the sovereign state of Serbia using bombs, invade Iraq on a tissue of falsehoods and then overthrow Libya’s Muammar Gaddafi without any UN resolution. As Putin commented in one of his acid asides that pepper Short’s account, when it came to concocting fables “those of us in the KGB were children compared to American politicians”. No wonder Xi Jinping of China and much of the world demur at the west’s claim to have done nothing to provoke the nightmare that has descended on Ukraine.

For all his recent whitewashing of Stalinism and Soviet history, in the early 1990s Putin understood the 1917 revolution had taken the country to an economic and political dead end. In his words, “the only thing they had to keep the country within common borders was barbed wire. And as soon as this barbed wire was removed, the country fell apart.” Yet running through all Putin’s thinking was a clear belief that the break-up of the Union in 1991 was a catastrophe for Russia; what was lost was not the Soviet dream but a country that physically stretched from Poland to the Pacific and historically back to Peter the Great and before. Putin mourned: “It was precisely those people in December 1917 who laid a time bomb under this edifice… which was called Russia… they endowed these territories with governments and parliaments. And now we have what we have.” Except we do not. For Putin and many of his fellow Russians have never understood how a country they believe saved the world from fascism at staggering personal cost just 50 years before dissolved in a matter of weeks.

sábado, 21 de agosto de 2021

Biografia situa Henry Kissinger entre o homem bélico e diplomata habilidoso, Barry Gewen - Martim Vasques da Cunha (OESP)

 Biografia situa Henry Kissinger entre o homem bélico e diplomata habilidoso

Kissinger é considerado pela esquerda moderada como criminoso de guerra e pela direita razoável um pensador refinado enquanto a direita nacionalista o chama de comunista rendido e a esquerda radical o ofende com um 'infiltrado imperialista'

Martim Vasques da Cunha*, Especial para o Estadão

21 de agosto de 2021 | 15h00


Na semana em que foi anunciada a vitória de Joe Biden para a presidência dos Estados Unidos, numa acirrada eleição que mudou o Ocidente para sempre, o escritor americano Walter Kirn – conhecido pelo público por ser o autor do livro que deu origem ao filme homônimo com George Clooney, o ácido Amor Sem Escalas (2009) – escreveu no Twitter que, na verdade, o vencedor se chamava Henry Kissinger.

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Henry Kissinger, diplomata nascido na Alemanha, que teve importante papel nos EUA  

Foto: Gary Cameron/Reuters

 

Para quem não é um ‘millenial’ e ainda tem boa memória, o nome de Kissinger geralmente é confundido com o trocadilho infame de “Henry Killinger”. Considerado pela esquerda moderada como um “criminoso de guerra” e pela direita razoável como um “pensador refinado e um diplomata brilhante” (enquanto a direita nacionalista o chama de “comunista rendido” e a esquerda radical o ofende com um “infiltrado imperialista”), o autor do colossal Diplomacia (1994) – um tomo de mais de mil páginas que praticamente explica o surgimento da Nova Ordem Mundial que conhecíamos antes da peste do coronavírus – ganhou essa reputação graças ao fato de que foi, entre 1968 e 1975, o Secretário de Estado e Consultor de Segurança de ninguém menos que Richard Nixon e do sucessor deste último após o escândalo Watergate, Gerald Ford. 

Nesses anos, foi obrigado a lidar com assuntos mais do que urgentes como a Guerra Fria, o poder nuclear da União Soviética e – last but not least – o conflito no Vietnã. Como se esses problemas não fossem suficientes, ele também teve de administrar (segundo alguns, “ordenar” é a palavra exata) a interferência à soberania nacional de país latino-americanos, como o Chile em 1974 (com a queda de Salvador Allende) e o financiamento da “Guerra Suja” ocorrida em uma Argentina dominada pelo exército militar.

Por causa deste extenso currículo, Kissinger se tornou um personagem digno de biografias e tratados que tentam analisá-lo na sua ambiguidade (um termo muito importante para entender corretamente suas ações, de acordo com o próprio). Temos todo um mercado editorial sobre esse homem, desde o polêmico The Trial of Henry Kissinger (2001), do falecido Christopher Hitchens, passando pela primeira parte da biografia de Niall Ferguson, Kissinger 1923-1968: The Idealist (2015), até chegar ao produto mais recente – o complexo e instigante The Inevitability of Tragedy: Henry Kissinger and His World, do editor da prestigiada New York Times Book Review, Barry Gewen.

Na sua estreia literária, ocorrida após trinta anos retocando os textos dos outros, Gewen provocou um certo rebuliço ideológico entre seus pares. Notório por ser um progressista de quatro costados (afinal, ninguém trabalha por acaso no New York Times), ele os surpreendeu por escrever um livro que tentava compreender um sujeito que, para este “círculo dos sábios”, era mais do que alguém nefasto. Era o próprio mal encarnado.

Gewen se recusa a ir por essa vereda – mas não pelos motivos sorrateiros atribuídos a ele. Como o próprio subtítulo indica, não se trata de uma biografia, e sim de um ensaio que reflete sobre o “mundo” onde Kissinger nasceu e se formou: a Alemanha entre as duas guerras mundiais, mais precisamente a Alemanha de Weimar que depois seria a de Adolf Hitler. A partir daí, o que temos é uma excelente síntese da história das ideias políticas do século 20, centralizadas em três figuras essenciais para a educação do futuro diplomata do governo Nixon: Leo Strauss, Hannah Arendt e Hans Morgenthau.

Mesmo tendo pouco contato pessoal com os dois primeiros nomes, Kissinger foi um dos alunos favoritos do terceiro, hoje considerado o papa do “realismo político”. Apesar de ser divulgado por seus apoiadores como uma novidade do século 20, esse pensamento que fez fama na cátedra das Relações Internacionais é apenas uma variação do velho e bom Leviatã (1651), de Thomas Hobbes. Porém, há uma diferença: se, com Hobbes, a reflexão sobre o poder tinha como base o trauma das guerras civis inglesas do século 17, Morgenthau e Kissinger (junto a Strauss e Arendt) perceberam o problema sobre quem comanda de fato o Estado sob as sombras totalitárias do nazismo e do comunismo.

Para ambos, o início dessas moléstias coletivas não foram as benesses da democracia liberal – e sim justamente os seus excessos. Daí a desconfiança suprema em relação a este modelo de governo, justamente para preservá-lo – o que, segundo Gewen, esclareceria as intervenções de Kissinger em países como Chile e Argentina (para os defenderem da “ameaça vermelha”) e da intricada estratégia de détente, com exaustivas negociações para se alcançar o “equilíbrio” com o Vietnã e a União Soviética, apesar dos constantes (e mortíferos) bombardeios no Camboja e em Saigon.

No fundo, argumenta Gewen, o que impulsionaria a política de Kissinger é a noção aguda de uma ambiguidade que, se não for respeitada, terminará naquilo que seria a “inevitabilidade da tragédia”. Na política, de acordo com esse raciocínio, não há imperativos morais; há apenas o encontro com o desconhecido e ali, dentro de variáveis extremamente nebulosas, qualquer escolha corre o risco de ser não só a errada, mas sobretudo a mais letal de todas.

Isso não significa que Henry Kissinger é incapaz de ter uma ética. Sem dúvida, como todo o diplomata, ele possui princípios morais. O único problema é que ele os oculta com tamanha insistência para si mesmo que mal pode conhecê-los na realidade. Gewen evita o clichê de qualificá-lo como um político “maquiavélico”, mas também não cai na benevolência de um Niall Ferguson que o classifica como um “idealista” kantiano, afoito para implementar a “paz perpétua”, custe o que custar. A tragédia da política se torna inevitável, nesse caso, simplesmente porque os intérpretes deste “superkraut” (como a revista Time o chamou no auge da sua celebridade) jamais perceberam que, antes de tudo, ele faz parte de uma longa (e pouco divulgada) tradição histórica: a de ser um cortesão do poder.

Surgida no Renascimento, com a publicação do livro intitulado justamente O Cortesão (1528), escrito por Baldassare Castiglione, tal corrente de pensamento, se podemos chamá-la assim, promove uma forma de trilhar os labirintos da política por meio de uma “poética da dissimulação”, na qual o sujeito precisa usar constantemente uma máscara para agradar o governante e sua súcia, não só para preservar a própria vida, mas também a sua sobrevivência material. A consequência direta disso é a ausência de sinceridade e de qualquer decisão moral ao dizer a verdade quando ela se tornou a única alternativa possível, mesmo que ela seja amarga para o político que está no comando de uma nação. O disfarce, aqui, pode ser o discurso cifrado, a ironia, o humor jocoso, quando não o próprio elogio feito com segundas intenções. Enfim, tudo aquilo que jamais teve relação com a nobreza da tragédia.

Eis aí o equívoco maior de Barry Gewen ao compreender Kissinger. Não há nenhuma inevitabilidade de um destino cruel se o sujeito que pratica este tipo de política jamais permitiu, dentro do seu coração, a comunicação da verdade, principalmente para si mesmo – e para seus semelhantes. A tragédia precisa dessa purgação, pois seu impulso é uma reviravolta moral que faz o sujeito fascinado pelo poder entender que, ao fim e ao cabo, isto vale muito pouco na vida de uma pessoa realmente autêntica.

Não foi o caso de Henry Kissinger. Ele sempre gostou de ser uma “eminência parda”, mesmo nos anos em que não estava mais na Casa Branca. Foi ouvido por Reagan (a quem desprezava), Bush pai e filho, Bill e Hillary Clinton, e Barack Obama, mas jogado de escanteio por Donald Trump. Agora, com Joe Biden, ele tem uma segunda chance de voltar a ser um cortesão, com toda a sua graça e fleuma, senão fisicamente, pelo menos em espírito. Não é por acaso que, um dia após a posse do novo presidente americano, um comboio militar entrou na região noroeste da Síria, um país que até então tinha uma intervenção suave no governo anterior, em especial porque a ditadura de Bashar Al Assad era um obstáculo para o ressurgimento do Estado Islâmico. Motivo? “Preservar a democracia naquele local”. 

Com essa justificativa, é evidente que não há mais a ambiguidade da política quando a dissimulação volta em cena – conforme se comprovou na semana passada, com a saída das tropas americanas em Cabul, no Afeganistão, numa desastrosa retirada semelhante ao que ocorreu em Saigon, no ano de 1975, uma operação que também teve a impressão digital de Kissinger. E assim ficamos com o gosto do trágico na boca ao percebermos que, afinal de contas, Walter Kirn estava completamente certo quando escreveu que este cortesão de poder foi o verdadeiro vencedor naquelas eleições de 2020 que mudaram o Ocidente para sempre. Quem viver, verá.

*MARTIM VASQUES DA CUNHA É AUTOR DE ‘O CONTÁGIO DA MENTIRA’ (ÂYINÉ, 2020)


domingo, 4 de julho de 2021

Euclides da Cunha: uma nova biografia por Luis Claudio Villafañe: entrevista (Estadão), resenhas

Livro detalha o trabalho de Euclides da Cunha em expedição na Amazônia


 Biógrafo mostra que jornalista e escritor tinha saber enciclopédico, mas sua obra apresentava problemas científicos graves

Ubiratan Brasil, O Estado de S.Paulo 

03 de julho de 2021 | 05h00 

Consagrado pela publicação de Os Sertões (1902), o escritor e jornalista Euclides da Cunha (1866-1909) acreditava que alcançaria voos mais altos com À Margem da História, trabalho sobre sua viagem à Amazônia que seria mais inovador que o texto sobre a ação militar em Canudos. “Ainda que de forma embrionária, o livro traz uma denúncia forte e consistente sobre as péssimas condições de vida dos seringueiros”, observa o diplomata e historiador Luís Cláudio Villafañe G. Santos, autor de Euclides da Cunha: Uma Biografia (Todavia), alentada pesquisa que revela passagens pouco conhecidas sobre o escritor. 

Como ser enviado, em 1904, na expedição fluvial amazônica como primeiro comissário, a fim de trabalhar na demarcação do território brasileiro do atual Estado do Acre, que estava em disputa com o Peru. Publicado postumamente em 1909, À Margem da História esboça, segundo Villafañe, o desenvolvimento intelectual de Euclides – ali, ele trata da escravização e matança de indígenas promovidas pelos portugueses, além de denunciar o esquema em que a escravidão por dívida adotado pelos senhores da borracha.

A viagem, autorizada pelo Barão do Rio Branco, teve grande importância na resolução da questão fronteiriça, fato pouco informado entre os historiadores. Villafañe, atual embaixador brasileiro na Nicarágua, detalha ainda a mudança de pensamento de Euclides durante a cobertura da batalha de Canudos (que o autor trata por Belo Monte, nome do arraial), quando foi o jornalista enviado pelo Estadão: de sertanejos empenhados na restauração da monarquia (como pregava o governo federal), os jagunços foram, na verdade, vítimas. Sobre o livro, Villafañe respondeu, por e-mail, as seguintes questões. 

Escritores de respeito reconheciam os problemas de Os Sertões, especialmente a influência do positivismo de Auguste Comte e do evolucionismo de Herbert Spencer, algo realmente racista. Mas apesar disso, a força da linguagem e da própria história que ele conta ainda está muito viva. 

Uma das chaves para a boa recepção de Os Sertões foi, como o próprio Euclides disse, que o livro representaria “o consórcio da ciência e da arte”. O Brasil tornara a escravidão ilegal havia pouco mais do que uma década, a República buscava se afirmar como a superação do passado. Havia, enfim, uma grande ânsia de modernização e a ideia de apoiar a literatura na ciência estava na ordem do dia. Euclides mostrou no livro, e na atividade jornalística, um saber enciclopédico. Discorria com grande desassombro desde a geografia do interior da Bahia ao imperialismo britânico no Tibete. O preço da vastidão desse saber era pago em lacunas assombrosas, graves erros científicos e uma tremenda superficialidade em vários temas. A ciência de Os Sertões foi sendo progressivamente desmentida desde o início, ainda que em alguns campos – como na descrição histórica de Belo Monte (Canudos) e da gente de Antônio Conselheiro – tenha seguido influente por muitas décadas. A força literária e as qualidades estéticas do texto, contudo, seguem vigentes. Como todo clássico, a cada geração, Os Sertões é relido de forma diferente, mas se tornou uma narrativa já atemporal, cuja beleza segue inalterada e que continua a emocionar e trazer lições a seus leitores. 

O conhecimento científico de Euclides é muito contestado. Ele era realmente habilitado para emitir tais conceitos?

Euclides era engenheiro e, naturalmente, possuía uma cultura científica bastante boa para a época. Em todo caso, às vezes, exibiu uma assombrosa falta de modéstia sobre seu verdadeiro domínio da ciência de seu tempo, mesmo daquela que chegava ao Brasil. A pretensão de dominar campos tão diversos como geologia, geografia, botânica, climatologia, antropologia, sociologia e história, para começar, era desde logo muito pouco factível. Já em 1903, ele foi acusado de nefelibatismo científico e Os Sertões apresentado como um “modelo de ciência popular”. De lá para cá, esse diagnóstico tem sido recorrentemente confirmado e hoje admite-se que as bases científicas do livro estão totalmente defasadas. 

Euclides desenvolve diferentes aspectos de Antônio Conselheiro – o que provocou essa multiplicidade de visão?

A ideia de que a visão inicial de Euclides – de que o movimento de Antônio Conselheiro era uma revolta antirrepublicana e que deveria ser esmagada – mudou quando ele chegou a Belo Monte e se defrontou com os horrores da frente de batalha é uma mistificação. O jornalista apoiou a ação do Exército até o fim. Entre o fim da guerra, em 1897, e em 1902, quando publicou Os Sertões, a ideia de que Belo Monte pudesse ter sido uma ameaça já estava descartada e a campanha militar já fora denunciada como um crime por muitos autores. Euclides como escritor, na verdade, apenas se conformou com uma visão que já estava bem consolidada em 1902. 

Se o material acumulado sobre a Amazônia foi mais consistente que o de 'Os Sertões', por que 'À Margem da História' não repercutiu como se esperava?

É uma pergunta muito interessante. Na verdade, À Margem da História já trazia, ainda que de forma embrionária, uma denúncia forte e consistente sobre as péssimas condições de vida dos seringueiros. E, quando o livro saiu, em 1909, Euclides já era um escritor consagrado cujo nome então repercutia ainda mais com todo o escândalo que se armou pelas circunstâncias de sua morte. A grande diferença, me parece, é que – ao contrário dos sertanejos de Antônio Conselheiro, já falecidos quando se publicou Os Sertões – era claramente possível fazer algo, ou muito, para melhorar a vida dos seringueiros. A borracha era então o segundo produto mais importante da pauta de exportações brasileiras e gerava uma riqueza considerável. Objetivamente, contudo, não interessava aos donos das plantações, aos comerciantes, aos exportadores e às elites da Amazônia e do Rio de Janeiro mudar o assombroso esquema de exploração dos trabalhadores nos seringais, submetidos a uma virtual escravidão. 

Euclides foi realmente um importante assessor do Barão do Rio Branco?

Este é um lado bastante desconhecido de Euclides. Além da missão ao Rio Purus, que durou de fins de 1904 aos últimos dias de 1905, o escritor trabalhou no Itamaraty de 1906 até sua morte, em 1909. Ou seja, há um longo período pouco estudado, uma lacuna que a biografia que escrevi procura preencher, ainda que parcialmente. Conto boas histórias sobre a relação entre Euclides e Rio Branco e sua atuação no Itamaraty. Além do levantamento do Purus e de preparar os mapas que orientaram as negociações diplomáticas com o Peru e com o Uruguai, Euclides serviu de assessor e algumas vezes de porta-voz das ideias e interesses do Barão junto à imprensa e ao público. 

Seu trabalho na comissão Brasil-Peru terá sido o mais importante na carreira de Euclides?

Não apenas com o trabalho na Comissão Brasileira-Peruana de Reconhecimento do Rio Purus, mas pelos diversos serviços prestados, Euclides foi uma peça importante na negociação de limites entre o Brasil e o Peru, que resultou na incorporação de mais de 400 mil quilômetros quadrados ao território brasileiro, incluídos aí dois terços da superfície do Acre – que, ao contrário do que geralmente se acredita, não passou definitivamente ao controle brasileiro com o Tratado de Petrópolis, assinado em 1903 com a Bolívia. Ainda que a ponte sobre o Rio Pardo que Euclides reergueu siga de pé e continue a servir, já há mais de um século, aos habitantes e visitantes de São José do Rio Pardo, se pode arguir que a pouco conhecida atuação de Euclides no Itamaraty e, em especial, na questão de limites com o Peru, seja seu maior legado fora da esfera literária.

Euclides assumiu os filhos que a esposa Ana teve com Dilermando de Assis, mas tentou matá-lo para manter sua reputação e acabou morto: como foi isso?

A relação conjugal de Euclides e Ana foi marcada desde o início por um grande distanciamento emocional e físico e fortes diferenças de temperamento. Depois do início do relacionamento de Ana com Dilermando, em fins de 1905, o casamento entrou em crise quase permanente até o trágico desenlace, em agosto de 1909. Já em meados de 1906, Euclides soube que era traído, quando do nascimento de Mauro. No ano seguinte, nasceu o segundo filho de Ana e Dilermando, cuja paternidade Euclides também assumiu mesmo sabendo que não era o pai. A separação traria danos de reputação para Euclides, mas muito maiores para Ana, que ainda assim buscou que Euclides aceitasse essa via. Ele resistiu para preservar sua reputação e prolongou a farsa que se tornara aquele casamento falido. O ponto de ruptura se deu no momento em que Ana decidiu abandonar o lar. Assim, as aparências de um casamento funcional seriam inevitavelmente desmascaradas e sua complacência com a já longa relação de Ana com um jovem quase da idade dos filhos revelada. Como em muitas outras pendências da vida pessoal, Euclides não teve determinação para buscar uma solução sensata para a situação conjugal, que foi se arrastando e se agravando ao longo dos anos. Afinal, o escritor acabou optando por se tornar um assassino e um feminicida – de forma absurda – como solução para minorar o dano à sua reputação. Acabou morrendo na tentativa.


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Valor Econômico, 3-4/07/2021, Caderno de Fim de Semana



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quinta-feira, 18 de março de 2021

Quem disse que a economia do antigo Egito era primitiva? Era uma das grandes economias do mundo antigo - Stacy Schiff (book on Cleopatra)

 Cleopatra: A Life by Stacy Schiff. 

The economy of Egypt during Cleopatra's reign was robust and efficient. This made Cleopatra fabulously wealthy -- even by today's standards -- and one of the wealthiest monarchs in the world. She was wealthier than Caesar, but had no standing army, and was thus both coveted by and vulnerable to Rome:

"The Ptolemaic system [the Ptolemies were Cleopatra's dynastic family and the Greek rulers of Egypt, after its conquest by one of Alexander the Great's generals] has been compared to that of Soviet Russia; it stands among the most closely controlled economies in history. No matter who farmed it -- Egyptian peasant, Greek settler, temple priest -- most land was royal land. As such, Cleopatra's functionaries determined and monitored its use. Only with government permission could you fell a tree, breed pigs, turn your barley field into an olive garden. All was scrupulously designed for the sake of the record-keeping, profit-surveying bureaucrat rather than for the convenience of the cultivator or the benefit of the crop. You faced prosecution (as did one overly enterprising woman) if you planted palms without permission. The beekeeper could not move his hives from one administrative district to another, as doing so confused the authorities. No one left his village during the agricultural season. Neither did his farm animals.

"All land was surveyed, all livestock inventoried, the latter at the height of the flood season, when it could not be hidden. Looms were checked to make sure that none was idle and thread counts correct. It was illegal for a private individual to own an oil press or anything resembling one. Officials spent a great deal of time shutting down clandestine operations. (Temples alone were exempt from this rule for two months of every year, at the end of which they, too, were shut down.) The brewer operated only with a license and received his barley -- from which he pledged to make beer -- from the state. Once he had sold his goods he submitted his profits to the crown, which deducted the costs of raw materials and rents from his income. Cleopatra was thereby assured both of a market for her barley and of profits on the brewer's sales. Her officials audited all revenues carefully, to verify that the mulberries and willows and acacia were planted at the proper time, to survey the maintenance of every canal. In the process, they were especially and frequently exhorted to disseminate throughout Egypt the reassuring message that 'nobody is allowed to do what he wishes, but that everything is arranged for the best.'

"Unparalleled in its sophistication, the system was hugely effective and, for Cleopatra, hugely lucrative. The greatest of Egypt's industries -- wheat, glass, papyrus, linen, oils, and unguents -- essentially constituted royal monopolies. On those commodities Cleopatra profited doubly. The sale of oil to the crown was taxed at nearly 50 percent. Cleopatra then resold the oil at a profit, in some cases as great as 300 percent. Cleopatra's subjects paid a salt tax, a dike tax, a pasture tax; generally if an item could be named, it was taxed. Owners of baths, which were private concerns, owed the state a third of their revenue. Professional fishermen surrendered 25 percent of their catch, vintners 16 percent of their tonnage. Cleopatra operated several wool and textile factories of her own, with a staff of slave girls. She must have seemed divine in her omniscience. A Ptolemy 'knew each day what each of his subjects was worth and what most of them were doing.'

"How wealthy was she? Into her coffers went approximately half of what Egypt produced. Her annual cash revenue was probably between 12,000 and 15,000 silver talents. That was an astronomical sum of money for any sovereign, in the words of one modern historian 'the equivalent of all of the hedge fund managers of yesteryear rolled into one.' (Inflation was an issue throughout the century, but it affected Cleopatra's silver less than her bronze currency.) The most lavish of lavish burials cost 1 talent, the prize a king tossed out at a palace drinking contest. A half-talent was a crushing fine to an Egyptian villager. A priest in Cleopatra's day -- his post was a coveted one -- made 15 talents yearly. That was a princely sum ... Pirates set a staggering 20-talent ransom on the head of the young Julius Caesar, who, being Caesar, protested that he was worth at least 50. Given a choice between a 50-talent fine and prison, you opted for jail. You could build two impressive monuments for a much-loved mistress for 200 talents. Cleopatra's costs were high ... But by the most stringent of definitions -- that of Rome's wealthiest citizen -- she was fabulously well-off. Crassus claimed that no one was truly rich if he could not afford to maintain an army.*

"*On one contemporary list Cleopatra appears as the twenty-second richest person in history, well behind John D. Rockefeller and Tsar Nicholas II, but ahead of Napoleon and J. P. Morgan. She is assigned a net worth of $95.8 billion, or more than three Queen Elizabeth IIs. It is of course impossible to accurately convert currencies across eras."

Cleopatra: A Life
 
author: Stacy Schiff 
title: Cleopatra: A Life 
publisher: Back Bay Books 
date: Copyright 2010 by Stacy Schiff 
page(s): 91, 92, & 97